Textos

  • Sobre Autobiografia de Todos Nós

    Alfredo Cândido Macedo Junior.
    Pelotas - RS, 1994.

    Texto orelha do livro Autobiografia de Todos Nós, de Lenir de Miranda.

    Há algum tempo envolvido com livros, textos e edições muitas, cultivava e seguia disfarçando uma vontade de ver editado em Pelotas um trabalho que ousasse diferenciar o que tem acontecido, tanto na forma, como em conteúdo. Um livro de forma (quase) quadrada por que não? De conteúdo que muito bem poderia estar noutro meio de expressão cultural – por que não? – e a autoria fosse de alguém cuja postura, proposta e talento não se submetessem ao conforto de uma idéia e à vaidade de escrever um livro – por que não?… Já perceberam, então, porque estou com Lenir nesta sua obra: simplesmente por que Lenir e tudo a que está se propondo enquadra-se perfeitamente no que nos faltava. E se assim é, tê-la com o selo de nossa editora é como sentir os prazeres da Pasárgada, ou arriscar os extremos e as surpresas de uma Liliputh… Foi um caso de sintonia quase perfeita (e digo quase porque, se total, talvez não precisas se acontecer), já que tanto já sei e espero do que ela traz, que tenho certeza, Lenir, vocês, eu, nós, todos sairemos acrescidos. Lenir reinventa a experiência européia do livro-de-artista, e nestes primeiros produtos ela mesma se envolve, diagrama, imprime e supervisiona a encadernação, dando de si e de seu tempo, à procura do produto final. E Lenir, da idéia do LIVRO DE ARTISTA, torna-se a ARTISTA DO LIVRO, guardando a simetria de um livro, mas trazendo esta proposta nova/antiga (papiro/manuscritos) num momento em que estamos todos ávidos por algo de essência: a essência do artista na sensibilidade do fruidor.

    ps: Sobre Lenir e o que ela admite, gosta, empreende, inquieta ou intui, ver neste livro na sequência das páginas. Muito de Lenir, pouco sobre Lenir.

    Satisfeitíssimo

  • Lenir de Miranda

    André Venzon. Porto Alegre - RS, 2012.
    Diretor do Museu de Arte Contemporânea do RS - MACRS
    PortoAlegre – RS Junho 2012

    A artista Lenir de Miranda volta a expor no Museu de Arte Contemporânea do Rio Grande do Sul sua sempre intensa produção pictórica. O impulso literário da sua pintura – frequentemente associada aos textos das narrativas de Homero e Joyce, onde Ulisses personificava o centro de toda figuração que flutua nas telas  é vista agora renovada beirando a quase desumanização na sua nova série, dita fragmentária, de trabalhos expostos em Terra Devastada.

    No entanto, a artista ainda preserva o elemento humano básico, que emerge da profundidade das leituras, dedicando obsessiva atenção ao conceitual, embora com habilidade e técnica de grande densidade expressiva. Lenir gosta de dizer que faz tudo ela mesma, talvez por isto que faça além, trabalhando sua sagaz pintura em todos os meios concebíveis, como tapetes, chapas metálicas, crinas de cavalo, galhos secos, entre outros materiais que opera com vigor extremo em suas colagens e assemblages. Nas histórias que contam – e a narrativa é um componente central aqui – a ficção clássica é trazida do imaginário ao mundo real, condensadas na materialidade de suas obras.

    Em um tempo que nossas vidas são moldadas por tecnologias digitais, que visitamos sites para conhecer os artistas e museus, as obras de Lenir de Miranda ainda pedem a visita ao ateliê, ao lugar de onde partiram. Transportá-las da histórica Pelotas para as salas do MAC, é bem dizer parte do que elas são – uma odisséia permanente ao que ainda desconhecemos do mundo. Talvez estejamos na frente de obras que têm como princípio provocar o quanto não entendemos a nós mesmos. Lenir, contudo, não perde seu fio condutor, aquele que ao nos levar por esta viagem sem fim, preserva e renova em nosso olhar os códigos pictóricos, reunidos entre os fragmentos e as instalações que acompanham solidários suas pinturas. A artista retrocede a figura do mito fundador, de civilizações arcaicas, acessando uma dimensão íntima do ser, onde podemos reencontrar e até descobrir novas fronteiras e limites que, agora, inspiradas na poesia de T.S. Eliot, convidam-nos a devastar a terra de uma existência (própria ou alheia), porém ainda ignorada.

    Lenir de Miranda não está preocupada com a pureza da linguagem, ao contrário, é mestra de uma produção excêntrica, tanto territorialmente, como na forma e concepção, pois não leva o mundo, mas o traz em suas pinturas, desenhos, assemblages, instalações e livros. A bicentenária Pelotas, cidade homenageada por ser berço permanente de importantes artistas, comemora hoje uma das suas cidadãs honorárias mais ilustres, que tem sua obra presente em diversos museus e coleções particulares pelo mundo afora. O MACRS sente-se orgulhoso de realizar esta dupla homenagem e agradece à artista pela oportunidade do reencontro com o Museu e o seu público.

  • Lenir de Livros

    José Luiz do Amaral
    professor e crítico de arte
    Amaral in cat. Autobiografia de Todos Nós. Porto Alegre : Solar dos Câmara - 1994 (Assembléia Legislativa do Rio Grande do Sul - Diretório Atividades Culturais)

    Volúpia do fazer, vertigem da comunicação mais ampla. Puro apelo sensorial, enigma conceitual. Tato e olfato pontuando a visão das formas que se mostram e escondem multiplicadas em mil conotações. Livro pede leitura. Dobras, dobradiças e ferragens constroem simulacros do próprio labirinto-engrenagem em que a vida se organiza como memória de vivências, sensações, conceitos. A significação perseguida como absoluto desfaz o cognoscível abrindo a possibilidade de um mais-conhecimento que não está na letra, na linha, na página, no livro. Não há livro, não há palavras, não há isto ou aquilo, mas muito mais. A arte despoja o signo de seu significado permitindo-lhe o vôo em busca da mais-significação. Verdadeira leitura da possibilidade sem fim. Tudo é livro. Tudo é leitura, releitura, cruzamento de vozes, sussurros, insinuações, tons surdos e acordes estridentes. Diálogo tenso. Denso mistério embebido no íntimo e silencioso prazer da relação entre o espectador e os signos que o seduzem.

    Tudo nos livros de Lenir de Miranda é absolutamente livro, é absolutamente arte. Intuição plástica em que forma e idéia conseguem aquela rara e feliz integração que libera e atiça a nossa imaginação para aventura da fruição estética. Contêm e revelam o gesto febril com que a artista os constrói como puras metáforas de livro. Continente e conteúdo de nós e do mundo. Objetos que possuem a quem os possue, espelhos em que podemos ver muito, muito mais do que na opacidade do cotidiano.

  • Lenir de Miranda

    Aracy Amaral.
    Catálogo da 8 ª Bienal do Mercosul, 2011. Porto Alegre, RS, Brasil.

    A personalidade artística de Lenir de Miranda se caracteriza pela inquietação permanente e pela versatilidade no uso desassombrado de materiais. Por outro lado, comparecem em seu trabalho a constante relação com a literatura e indagações existenciais presentes no espírito do homem de nosso tempo.

     

  • Lenir e Ulisses, Por Mail-Art

    Bruno Talpo. Catálogo Projeto Ulisses. Museu de Arte do Rio Grande do Sul. Porto Alegre, RS. 1988.
    professor do Liceu Artístico de Bérgamo, Itália
    pintor, escultor e gráfico
    pesquisador da mail-art e fenômenos de interarte no Centre Aragon

    “…É tempo de recuperar o perdido! Lenir de Miranda pertence a esse período, repito, de volta ao lugar de origem. Seu projeto, colonizador pelo avesso, tem o fascínio das coisas distorcidas, dos contos e das lógicas aberrantes.

    Que tem a ver a mail-art com tudo isso? Pouco ou nada! Fenômeno metalinguístico afim com a poesia visual, com a predileção pela filatelia, a xeroscopia e a colagem mas menos “literário” e mais contaminado (no Japão chegaram até a mandar pelo correio, como mail-art, um cão!), a mail-art representou a última, cronologicamente, poética utópica do nosso século dominado pela mídia. Remontar a Ray Johnson (Escola de New York) ou aos futuristas Balla, Boccioni e Marinetti ou ao movimento Fluxus, parte do “nouveau réalisme” de Pierre Restany, ou observar somente seu uso político (Clemente Padin), como semente dos movimentos de libertação; com Amnesty International, Solidarnosc, etc. São as últimas tentativas para historicizar um fermento criativo válido mais no plano sociológico que artístico.

    O fenômeno mail-art aparece um pouco como o conjunto dos destroços comunicativos que vogam em torno do naufrágio mais generalizado da arte, no oceano da comunicação. Os artistas que a praticam a expensas próprias ou que, em sua maioria, a exercitavam com fervor em torno dos anos 80, receberam a marca da mail-art, qual estrela de David, no gueto da arte marginal, em relação ao mercado.

    Os centros de poder da arte, galerias e museus, já há algum tempo, prepararam seus fornos crematórios para a infinita variedade de mensagens postais que se acumularam nas caixas de correio. Parece-me que o problema consiste no dilema entre permanecer fora da História e de suas transformações espirituais ou, aceitando até o confronto com estruturas que ele exprime, comprometer-se com o “establishment” da arte e com o mercado e suas regras estereotipadas.

    Uma coisa é certa: a arte multimídia e a mail-art representam a forma da arte do presente, o caos magmático do nosso universo comunicativo e poético. Contudo, entrar nas histórias do poder significa ceder boa parte daquela inocência e liberdade associadas ao gesto da criação sem finalidade e, em contrapartida, aceitar as suas regras consiste em prover de utilidade racional o mundo da arte considerado, por muitos, de exclusivo domínio do artista.

    O neoracionalismo constitui, na verdade, a página nova da arte global, em unidade com a arquitetura e o design, e que redescobre o papel social do artista (Ange Wandte Kunst: cromatic project). O neoracionalismo constitui, na verdade, a página nova da arte total.

    O convite de Lenir de Miranda levanta uma vasta gama de problemáticas, não apenas circunscritas ao continente latino-americano.

    O projeto de Lenir de Miranda, neste contexto, é original: tem o mérito de ser portador de vírus novos, de critérios desordenados com relação ao “logos” já acadêmico da mail-art.

    O binômio literatura / pintura converge, no Projeto Ulisses, para uma vontade alucinante e alucinatória, sinônimo do caos freudiano; mais do que “obra aberta”, trata-se de obra “dissoluta”, destinada à dissolução, ao retorno à palavra escrita, ao texto citado.

    Milão, 1988

    Referência Bibliográfica:

    TALPO, Bruno. Catálogo Projeto Ulisses. Porto Alegre : Museu de Arte do Rio Grande do Sul. Porto Alegre, RS. 1988.

  • Lenir de Miranda – Inquietude arrebatadora

    Cézar Prestes. Porto Alegre, RS. 2009.
    Diretor do Museu de Arte do Rio Grande do Sul
    Porto Alegre, Novembro de 2009

    A produção visual de Lenir de Miranda – intensa, arrebatadora e crítica – explode na tela, para além dos nossos limites físicos e emocionais. Ao estimular o imaginário e a reflexão, reprocessando mitos, identidades e realidades através de traços fortes e da intensidade das cores, a artista extrapola os espaços de um quadro, de uma performance, de um relato. Seu diálogo é com a questão humana por inteiro. O desenho, a pintura, as imagens, vídeos, poemas e instalações que nascem da sua inquietude e percepção aguçada, ao mesmo tempo em que ocupam um lugar e tomam caminhos, apontam para uma infinidade de outras formas e possibilidades de pensar e criar, sempre.

    É com os olhos voltados para o perfil intenso e apaixonado dessa artista admirável que o Museu de Arte do Rio Grande do Sul recebe Lenir de Miranda e sua verve criativa. O fato de possibilitarmos que, mais uma vez, o público possa tomar contato com a efervescência da sua obra nos deixa orgulhosos. Cumprimos, com alegria, nosso papel de agentes culturais e difusores da arte gerada no nosso Estado. Em síntese, o papel fundamental de um museu, que se soma ao guardar, catalogar, documentar, é esse: mostrar o trabalho do artista e possibilitar que os diálogos aconteçam.

    Ao entrelaçar as mais diversas expressões e tendências, estimulando o debate sobre a criação, proporcionamos que o artista / a arte se manifeste livre na sua incompletude para se completar ou não a partir do olhar de um outro. Como a própria Lenir diz, “uma pintura fica viva quando ela flui para dentro invadindo o que há em nossos próprios espaços íntimos. De acordo com Duchamp, o espectador projeta em seu olhar seu desejo”.

    Com uma trajetória marcada por passagens pela arte conceitual, sempre instigante, Lenir tem contribuído de forma inquestionável para o debate e a afirmação da arte contemporânea no sul do Brasil. Além disso, seu trabalho ocupa um espaço social importante na cultura gaúcha. Ela valoriza a nossa pintura a partir de uma linguagem plástica, ao mesmo tempo pessoal e universal, que se traduz na tela com a profundidade e a vastidão dos mares, da imaginação e do inexorável ir e vir do homem na busca do seu desejo, como tantos estudiosos e críticos da sua arte já falaram.

  • Lenir de Miranda

    Décio Presser. Pinturas. Catálogo Itaú Galeria : São Paulo, 1984.
    crítico de arte e jornalista
    Diretor do Instituto de Artes Visuais
    Secr. do Estado da Cultura do Rio Grande do Sul

    Com a atenção sempre voltada para a figura humana, esta artista gaúcha, envolve o homem com sinais, signos, símbolos, palavras e rabiscos, jogados sobre o papel, de forma aparentemente anárquica. E isso torna seu desenho instigante, exigindo do espectador mais do que uma simples leitura.

    Estas imagens têm, como ponto de partida, fotografias, coletadas em jornais e revistas, que, trabalhadas por Lenir, transformam-se em composições que procuram mostrar as complexas relações do homem contemporâneo com seu universo.

    Sua preocupação não é agradar mas tentar povoar os espaços com idéias que estimulem a interpretação do espectador, com um trabalho que foge às conotações do decorativo.

    Num clima onde as imagens não são definidas e sofrem interferências, Lenir se liberta através da violência do gesto e da cor. Trata-se de mais um passo no processo que poderá levá-la a maiores desfigurações, como demonstram os trabalhos mais recentes.

    Através da multiformidade de informações, ela capta os elementos que transforma numa obra capaz de suportar inúmeras leituras. E isso torna sua criação mais ágil e extremamente cosmopolita.

    Sua inquietação criativa faz com que seu trabalho, mantendo características próprias, tenha evoluído numa linha em que, além do seu coerente caminho pessoal, começa a influenciar novos seguidores.

    Porto Alegre, 1984

    Referência Bibliográfica:

    PRESSER, Décio. Pinturas. Catálogo Itaú Galeria : São Paulo, 1984.

  • Lenir de Miranda em Tempos de Rush

    Dione Veiga Vieira
    Porto Alegre, janeiro de 2008.

    Imaginemos que, no final de um dia, estamos todos confinados em um transporte veloz, o qual – no desígnio de atingir o seu destino final em um prazo pré-determinado – acelera nervosamente após cada parada obrigatória. É a hora do rush e estamos todos cansados, famintos e, sobretudo impacientes com o caos em nossa volta. Todavia suportamos esses trancos constantes, já que sabemos de antemão, que chegaremos por fim, a um espaço especial que nos acolherá para o nosso merecido descanso. Entre uma estação e outra, não há tempo para conversarmos longamente e nos conhecermos. Na pressa, nos mantemos todos incógnitos e superficiais para não perdermos o foco e o equilíbrio dentro desse estado de afobação geral. Não há tempo algum para coisas que exijam maior atenção como ler um livro, refletir a respeito da vida, dos outros, de nós mesmos. Não há tempo nem mesmo para apreciar a paisagem. Aliás, a rapidez que nos governa é tanta que até o cenário exterior se torna uma mancha indefinível, compacta e sempre igual por detrás dos vidros das janelas.

    Esse período atroz nos fere com certo desconforto, uma vez que estamos impossibilitados de desfrutar de momentos verdadeiramente tranqüilos ou, de simplesmente vivermos um instante de introspecção produtiva e satisfatória. Ao contrário disso, essa hora de corre-corre poderá ser o momento mais estéril de nossas vidas.

    Mas eis que, antes de alcançarmos o nosso destino, Lenir de Miranda surge provinda de um espaço de ebulição densa e intensa – o lugar dos pensamentos mais dramáticos e urgentes1 – e nos presenteia com pequenas bandejas contendo uma rica variedade de signos visuais e verbais; admiráveis metáforas que apreciamos entre o espanto e o deleite. Concluo assim, que finalmente algo nos salva desse tempo de rush; desse vácuo causado por uma corrida veloz imposta pelas engrenagens de uma vida cronometrada. Pois, a despeito de estarmos presos dentro dessa precipitada hora, nesse exato instante poderemos nos aprazer com breves iguarias que nos surpreenderão em cada detalhe de suas substâncias.

    Os Sentidos das Obras

    Lenir denomina essas obras de Fast Food2 – frutos de uma efervescência criativa que mistura referências históricas, filosóficas, cosmológicas, biológicas, musicais e literárias1 com diversos e pequenos objetos do cotidiano, e outras minúsculas sucatas. Entre uma e outra bandeja, podemos ler Eliot, Proust, Joyce, Pound, Mallarmé, Breton e William Gibson, (o inventor do termo cyberspace) – genuínas pérolas que Lenir recolheu de suas leituras preferidas e que presentemente estão impressas em etiquetas de papel, cuidadosamente justapostas às bandejas, nos oferecendo assim, rápidos alimentos espirituais.

    Todos os objetos espargidos cuidadosamente nas bandejas parecem recolhidos de escombros pós-hecatombe. Os nacos de carvão mineral, além de restos orgânicos como besouros mortos, espalhados por entre os miúdos objetos, reforçam essa idéia sombria. Luvas cirúrgicas, por exemplo, que descansam no fundo de um prato de alumínio, ornadas em suas extremidades com unhas postiças em vermelho-carmim – nos lembram que a vida, em suas vaidades vãs, não demorará a se reduzir em tristes destroços.

    As luxuosas referências literárias – e, muitas vezes, os próprios poemas de Lenir; os Poemáticos Conturbados3 – que se apresentam por entre esses objetos impregnados de reminiscências, sublimam esse doloroso sentimento de efemeridade e nos recolocam dentro de uma trégua compensadora que é a própria fruição da obra em seu sentido fundamental: um profundo mergulho em nós mesmos..

    Raros Pensamentos, Delicadíssimos Alimento

    Por momentos, ouço Lenir dizer: Cascudo na Bandeja…, aceitas?

    Lenir de Miranda costuma fazer escárnio de nossas comuns pretensões e anseios de vida que requerem atitudes sensatas, associações lógicas, pensamentos coesos, procedimentos práticos. O insólito para Lenir é sempre proposital. E a vertigem é inevitável. Ela sugere com suas incomuns provocações que hoje é impossível esperarmos por um tempo promissor. E para deixar bem claro o porquê desse espírito pessimista, Lenir nos avisa: “NOS TEMPOS EM QUE VIVO, COMO FAZER POÉTICAS QUE NÃO SEJAM CONTURBADAS?”

    Paradoxalmente, essas poéticas conturbadas recheadas de humor negro e presságios nebulosos, são verdadeiras delicadezas – extraordinários pensamentos visuais e verbais que amavelmente propõem novos sabores aos nossos sentidos embotados pelas amenas, insossas e até mesmo, pelas mais brutais banalidades desse mundo.

    Notas:

    1. Palavras da própria artista em depoimento por e-mail, em dezembro de 2007.
    2. ”Minha atual declaração, literalmente, alude numa bandeja metafórica, SEMPRE NA HORA DO RUSH, reenchida com o seguinte pensamento: NOS TEMPOS EM QUE VIVO, COMO FAZER POÉTICAS QUE NÃO SEJAM CONTURBADAS?” Lenir de Miranda, 2007.
    3. Poemas Poemáticos Conturbados. Poemáticos, oriundos de pneumáticos – relativos ao ar – que funcionam com ar sobre pressão: ou seja, poemáticos por terem conteúdo sob pressão… Conturbados porque nascem dos tempos atuais. Lenir de Miranda, 2007.

  • Fim de Banquete

    Eduardo Veras. Porto Alegre, 2006.
    Jornalista, mestre em História, Teoria e Crítica da Arte pela UFRGS

    Le Déjeuner sur l’Herbe foi motivo de escândalo quando apareceu, em 1863, no Salão dos Recusados, em Paris. Tornou-se, com o tempo, uma das imagens referenciais da arte ocidental. Entre os motivos (do furor e, depois, da consagração), havia o fato de Edouard Manet ter levado para a tela um tema então pouco caro à pintura: o piquenique. Quase século e meio adiante, na versão de Lenir de Miranda, artista gaúcha de reconhecido percurso pela pintura, pelo desenho e pelo livro de artista, aquele piquenique na relva ganha proporções de banquete, de excessos e transbordamentos.

    – Banquete dramático – ela própria sublinha.

    Não que o piquenique de Manet fosse modesto: entre mulheres nuas, seminuas e homens bem-vestidos, pipocavam as alegorias – frutas, água, ostras, sapo, passarinho. No piquenique revisitado, porém, aquele despudor, despudor da cena em geral e dos personagens em particular, dá lugar a uma refrega de intencionalidades, de interferências e de referências.

    Tento não confundir autor e obra. Mais ainda: tento adivinhar. Esse pequeno texto se faz às vésperas, antes mesmo da montagem do trabalho. Lenir me apresenta uma série de imagens ou imagens de imagens: pinturas, reproduções de pinturas, desenhos, projeções em computador, pequenas caixas-embalagens que vão constituir a instalação. Ela não sabe com certeza o que vai caber no Paço. Mas o passo é largo. O trabalho não se restringe ao que cabe ali. Vai além.

    Lenir cita extenso rol de referências. Convida Eliot para o almoço na relva. Por fim, observa:

    – O bucólico e sensual da cena de Manet transforma-se e aparece numa contextualização do traumático mundo contemporâneo. Sobras desoladas de lugares, memórias, imagens, das circunstâncias ordinárias da sobrevivência da vida do homem.

    À Lenir, interessa o que se acumula, o que se derrama, o que segue adiante.

    Eu mencionara um banquete, mas talvez fosse mais adequado pensar em fim de banquete (a hora em que, segundo Platão, Penia, a Miséria, seduz Poros, a Astúcia, que já tinha bebido demais). Lenir chega em busca dos restos. Os convidados já se foram, mas deixaram os cacos da sua passagem. Só a antropofagia nos une.

    Porto Alegre, 2006

  • O Tempo, O Kronos, Terrível Presença que Jamais se Detém

    Gonzaga in cat. Casa de Cultura Jaguarão - 1996.
    Escultor e Prof. Titular do Instituto de Artes da UFRGS
    Mestre pela Univ. Complutense de Madri

     

    Anotações, analogias e reflexões sobre o trabalho de Lenir de Miranda

    AUTOBIOGRAFIA – Livro-de-Artista, ou o registro, na matéria, do pensamento e da ação do homem.

    No trabalho de Lenir estamos diante e dentro do processo.

    A materialidade, aqui, tem seus significados e suas intenções. Tudo parece precário e efêmero e por isto, se nos depara instigante, cogitador.

    As diferenças da matéria, estabelecem os diálogos/com/vivências. Nos damos conta de nossa instabilidade, precariedade e finitude.O que nos salva é que continuamente nos reinventamos. Na saga da superação. O artista é o criador de outras realidades: as virtuais. O artista tira o homem do seu cotidiano para que se perceba uma outra dimensão.

    “A pintura é uma atividade mental”, Leonardo da Vinci. É preciso perceber a outra dimensão. Que surge da interpretação que o artista faz da realidade.

    O que surge, da paixão de Lenir pela ação do pensamento humano, é o resultado plástico que ela concretiza com os materiais da linguagem plástica, que transmitem e guardam as características de suas naturezas. São os metais, os materiais, que melhor conduzem a energia.

    O comparecimento destes elementos, na obra, levam o homem a perceber que todo o processo anímico é decorrente de uma fonte de energia. Tudo e todos estão comprometidos com a energia, desde a mais ínfima partícula do átomo até a imensidão do Universo.

    Perceber e lidar com este processo, é estar dentro e fora do fenômeno arte.

    É agir e refletir. Executar e analisar. O homem começa, pelas suas necessidades, a construir os seus objetos e preparar a sua sobrevivência. Desencadeia-se um processo de ação e de tempo. Inicia-se um longo trans/formar-se: homem/tempo.

    São as obras que fazem as pontes de ligação através do tempo, entre os seres. Ver e tocar o que outros viram, tocaram e executaram, faz-nos sentir as presenças que tanto amamos. Desde os utensílios primeiros. Se nos concentrarmos no sentido de anular o tempo, estaremos no tempo de outros, e isto engrandece nossa percepção. A música, a dança, o teatro, a pintura, dentre outros, são filhos de Kronos. É o eco, do que foi, que nos faz sentir que o som já aconteceu. É a vibração das notas finais, emitidas. Vibrações no espaço. O eco, que nos marca no espírito, o efêmero, dando lugar à reflexão. É buscando entender que filosofamos.

    É filosofando que começamos a compreender, isto é, apoderar-se das verdades. É aqui que começamos a refletir. Refletindo começamos a cogitar.

    A percepção da sensação (o sentir) da ação dentro do espaço/tempo: uma pintura, um livro-de-artista.

     

  • Lenir de Miranda

    Iberê Camargo. in ARTE GAÚCHA CONTEMPORÂNEA. Porto Alegre : Instituto Estadual de Artes Visuais, 1991.

    Lenir de Miranda é uma artista de grande talento.

    Ela se expressa numa linguagem profundamente pessoal e contemporânea.

    Lenir valoriza a nossa pintura.

  • A Escrita Pintada, A Pintura Escrita

    Icleia Borsa Cattani
    Doutora em História pela Universidade de Paris I – Sorbonne.
    Professora e Pesquisadora do Depertamento de Artes Visuais da Univ. Federal do Rio Grande do Sul.
    Editora da revista Porto Arte.

    A integração não tem a ver com a ilustração da escrita pela imagem, nem com a “explicação” da imagem pela escrita: elas andam juntas, correspondem-se sem se explicarem mutuamente, complementam-se sem se fundirem. Cada linguagem permanece íntegra nela mesma, num diálogo tenso com a outra; tenso, porque não se traduzem mutuamente; porque não se equivalem; porque seus elementos constitutivos são únicos e irredutíveis um ao outro. Segundo Foucault,

    “ … a relação da linguagem com a pintura é uma relação infinita. Não que a palavra seja imperfeita e esteja, em face do visível, num déficit que em vão se esforçaria por recuperar. São irredutíveis uma ao outro: por mais que se diga o que se vê, o que se vê não se aloja jamais no que se diz, e por mais que se faça ver o que se está dizendo por imagens, metáforas, comparações, o lugar onde estas resplandecem não é aquele que os olhos descortinam, mas aquele que as sucessões da sintaxe definem.” (Foucault, 1992 , p.25).

    Não há fusão entre texto e imagem, mas há “contaminação” de um pelo outro. Eles não se justapõem apenas, como em livros ilustrados tradicionais, mas se sobrepõem. A escrita é recoberta por manchas de tinta, ou por grafismos gestuais. O desenho possui, freqüentemente, frases ou palavras soltas: nem títulos, nem explicações, mas elementos formais que interagem com as imagens:

    “A imagem vai nascendo, e ela mesma exige respostas. Vou traçando e vou enxergando. A figura fica ali, me olhando, me desafiando. Ou eu acho o que ela quer, ou perco tudo.” (Miranda, 2000)

    Perde tudo, ou se perde? A arte é como a esfinge: “decifra-me, ou te devoro.”

    Lenir anseia pelas palavras como anseia pelas formas, cores, gestos que a pintura e o desenho permitem. Seu Ulisses é o herói narrado, sua trajetória, mas é também o mundo de paisagens, cenas, figuras que a própria narrativa desencadeia em sua imaginação. Assim, o oceano: que vai e vem, num retorno cíclico, tal como Ulisses. O círculo da vida, representado pelo fluxo da água, que, no seu ir e vir, nunca é a mesma. Do mesmo modo, o grafismo que a representa nunca é igual, pois o gesto sempre muda, de forma quase automática, inconsciente. A água é que conduz a mão, como as ondas conduzem Ulisses. O Ulisses de Lenir é seu Ulisses, que só existe na totalidade da palavra com a imagem. De suas palavras com suas imagens. É sem dúvida por isso (sendo a arte, sempre, uma forma de auto-retrato), que, neste último livro, Lenir substituiu o Ulisses-Leopold Bloom de James Joyce por Agnes Bloom. O outro lado do mito, sua face escura. O feminino, identitário e marginal simultaneamente. Dual: mito e anti-mítico, herói e anti-heróico. Aquele que se desloca aleatoriamente, mas não cumpre uma trajetória circular. Aquele que espera: é sempre o feminino que espera, que conta o tempo (o que passou, o que virá, o que falta passar). Aquele que se ocupa dos pequenos fatos do cotidiano. Aquele que exerce a repetição, essa sim, efetiva, das incontornáveis tarefas do dia a dia.

    O CORPO-ESCRITA, O CORPO ESCRITO

    A escrita sempre forma um corpo. Conjunto de signos que imprimem sobre o suporte uma tessitura, como uma tapeçaria. A mão que escreve, e o olho que lê executam um movimento regular, linear, rítmico, como tecendo e retecendo um corpo feito de tramas.

    No caso deste livro, esse corpo é irregular: variam os espaçamentos, os tipos dos caracteres, seu tamanho; às vezes, a escrita manual rompe a regularidade das letras impressas e introduz o tocante tremor do corpo que cria, o corpo da artista.

    Rasuras, vazios, notas à margem, sublinhas também constituem esse corpo textual, negando sua vocação à uniformidade e evidenciando-o como um organismo vivo: com suas cicatrizes, imperfeições, irregularidades. Ele reconstitui a gênese dos mitos: a narrativa oral, com seus ritmos irregulares, suas ênfases, suas pausas. E a presença indispensável do corpo que narra. A narrativa de Lenir, mesmo quando impressa em caracteres mecânicos, cria um ritmo que evoca os grafismos de seus desenhos: rapidez, urgência, a necessidade de registrar à medida que a idéia “sai” de sua mente e escorre para a mão.

    Ele traduz, assim, com mais força, o corpo escrito, de Agnes. Exposto com seus cansaços, seus fluídos e fluxos, sua pele e pêlos. Desvelado com seus sentimentos, reflexões e observações. Desvendado, sobretudo, por seu olhar.

    Esse corpo olha os dos outros e é por eles olhado. Vê-se refletido no espelho de um outro passageiro do ônibus, bem como nos vidros embaçados das janelas. Encontra-se projetado do corpo da artista e rebate em nossos próprios corpos, nós leitores – espectadores – voyeurs. Todos somos Agnes, todos somos Ulisses. A névoa de Ítaca nos invade a todos.

    Agnes está nas quinas dos muros, bem como nas ondulações das águas. A cela e o mar representam, para Lenir, duas simbolizações antagônicas do corpo, encerrado e livre simultaneamente. O corpo está, pois, presente (embora, não figurado) nos desenhos desses lugares.

    Agnes, secretamente, transborda.

    Como Lenir. Como todos nós, que sempre tentamos ir para muito mais além dos limites de nossos corpos: através dos mitos, ou do imaginário, ou da arte.

    Referência Bibliográfica:

    CATTANI, Icleia. A Escrita Pintada, A Pintura Escrita. Catálogo da Exposição PinturaLivroJoyceanamente. Galeria Obra Aberta : Porto Alegre, 2001.

  • Do Resto ao Lixo (a corrosão do desejo na era da reprodutibilidade técnica)

    AIME BETTS - Novembro de 2008
    Psicanalista; Membro da Associação Psicanalítica de Porto Alegre, RS)
    Fragmento da palestra - Congresso da APPOA: A Angústia

    Resumo:
    O autor aborda neste artigo as conseqüências subjetivas e sociais do discurso da ciência e tecnologia e dos desdobramentos da ética protestante do trabalho no novo capitalismo, examinando como essas conseqüências são percebidas inconscientemente pelo artista e pelo escritor, transmitidas no processo criativo e inscritas na obra, bem como as incidências subjetivas dessas consequências podem ser lidas no caso clínico do “Homem dos Lobos” de Freud.
    Palavras-chave:
    incidências subjetivas, discurso da ciência e tecnologia, criação artística, ética protestante do trabalho, novo capitalismo.

    “Toda arte é ao mesmo tempo superfície e símbolo. Os que vão abaixo da superfície o fazem por sua própria conta e risco.”
    Oscar Wilde – O Retrato de Dorian Grey

    “A ética do trabalho é a arena em que mais se contesta hoje a profundidade da experiência.”
    R. Sennett, 1999, p.117

    “Vou revelar-te o que é o medo num punhado de pó.” (“I will show you fear in a handful of dust.”)
    T. S. Eliot – Waste Land

    “Depois de tudo, estarei sentada aqui, servindo chá aos amigos.”
    (“After all, I shall sit here serving tea to friends”)
    T. S. Eliot – Portrait of a Lady


    Introdução

    O título deste trabalho se inspira livremente em três autores. Do resto ao lixo, parte de Lacan em seu seminário da angústia. A corrosão do desejo, de Richard Sennett, que aborda a corrosão do caráter como conseqüência pessoal do trabalho no novo capitalismo. E a era da reprodutibilidade técnica vem do ensaio homônimo de Walter Benjamin sobre a arte.

    Três perguntas norteiam este escrito. Quais são as conseqüências subjetivas e sociais do discurso da ciência e tecnologia e dos desdobramentos da ética protestante do trabalho no novo capitalismo? Como essas conseqüências são percebidas inconscientemente pelo artista, pelo escritor, e transmitidas no processo criativo e em maior ou menor medida inscritas na obra? Podemos ler as incidências subjetivas dessas consequências no caso clínico do “Homem dos Lobos” de Freud?


    Freud, em seu artigo de 1907 “Atos obsessivos e Práticas Religiosas”, fala que as moções pulsionais recalcadas são vividas como uma tentação e que o processo de recalcamento é apenas parcialmente bem sucedido, gerando por isso angústia. A angústia vivida em função da ameaça de retorno do recalcado ganha controle sobre o futuro na forma de uma expectativa ansiosa, ou seja, de uma apreensão em relação ao que aguarda ao sujeito no futuro.


    V – Conseqüências subjetivas e sociais do discurso da ciência e tecnologia transmitidas pelo artista.

    Talvez tenha sido um artista quem melhor captou a destituição do sujeito suposto saber e a promoção do objeto ao estatuto de suposto saber em seu lugar, assim como a exclusão do sujeito das relações sociais e sua coisificação, juntamente com a promoção do objeto/mercadoria/fetiche ao lugar de primazia sobre as coisas humanas. A arte contemporânea, no espírito de seu tempo, procura ir abaixo das superfícies e eliminar o quanto possível qualquer forma de representação, visando uma presentação do real.

    Penso que esse artista foi Marcel Duchamp. Duchamp se colocou no olho do furacão da “refuncionalização da arte” decorrente da “emancipação da técnica dos seus fundamentos no culto” (Benjamin, 1994, p. 176) na era da reprodutibilidade técnica e seu reposicionamento como valor de exponibilidade e valor de mercado.

    Quando ele inscreveu sob o pseudônimo de R. Mutt seu ready-made intitulado “Fonte” para a exposição ‘des Indépendants’, em 1917, ele chutou o penico, desafiando as convenções e pompa do mundo das artes. Causou escândalo, sua obra foi recusada e a polêmica desencadeada segue repercutindo até hoje. Duchamp colocou o dedo na ferida da crise da arte, transmitindo em sua criação provocativa as conseqüências subjetivas e sociais do discurso da ciência e tecnologia, abrindo a caixa de pandora. Na verdade, ao ser aberta, a caixa de pandora revela o estilhaçamento da aura e das tradições, que se pulverizam em todas as direções. Algumas se conservam dentro do campo da função da arte, outras seguem rumos distintos. Algo se perde na passagem do resto ao lixo.

    Com seus ready-made, Duchamp apontou que a última fronteira da criação artística, da possibilidade de criação de alguma aura humana na era da produção de objetos em série industrial, se resumia à autoria intelectual, à escolha de objeto feita pelo artista, que é capaz de fazer de uma coisa outra coisa, ao retirar o objeto industrializado de seu contexto funcional ou convencionado, subvertendo seu conceito, e renomeando o mesmo com títulos indissociáveis da natureza plástico-lingüística proposta por ele.


    Lenir de Miranda, artista de Pelotas, RS, criou em 2006 uma instalação e um vídeo denominados “Visão Pós-traumática do Déjeuner sur l´Herbe”, obra que foi aceita na Documenta de Kassel virtual em 2007. A artista pelotense parte da obra de Edouard Manet (Le Déjeuner sur l´Herbe, 1863) e faz uma “contextualização iconográfica” da mesma.

    A obra de Manet foi inspirada em obra anterior de Ticiano (Concerto Pastoral, 1508-1509), e foi objeto de inspiração de muitas versões realizadas por diversos artistas. O Déjeuner de Manet provocou escândalo na época, e foi exposta apenas no Salão dos Recusados. O motivo manifesto dessa reação parece ter sido o fato dele colocar uma mulher nua ao lado de homens vestidos e outra mais ao fundo se banhando de camisa nas águas de um riacho. Se não bastasse isso para chocar a moral e bons costumes de seus contemporâneos parisienses, Manet pinta essa mulher nua – em relação à qual os dois homens parecem indiferentes – em primeiro plano, olhando diretamente para o espectador! Seu olhar interpela quem contempla ao quadro. Vemos na imagem o que nos olha, e o desejo que esse olhar objeto pequeno a causa fez retornar o recalcado que escandalizou os parisienses do século XIX, para além das inovações de estilo, que servem ao mesmo propósito de re-velar as formações do inconsciente.

    Talvez algo mais sombrio ainda contido nessas inovações de estilo tenha chocado os parisienses de 1863, como um prenúncio dos horrores da sociedade em vias de ser veiculada pela ciência (Lacan, 2003, p. 263).

    Duzentos e vinte e cinco anos mais tarde, aprés coup, na Visão Pós-Traumática do Déjeuner sur l’Herbe, ao som da Pastoral de Beethoven, Lenir de Miranda faz um narrador masculino recitar um trecho do poema Waste Land, de T. S. Eliot (1981, p. 90): Eu lhes mostrarei medo num punhado de pó. Surge em seguida o quadro de Manet, que vai sofrendo transformações progressivas com uma sobreposição digital de imagens. Inicialmente, as quatro figuras do quadro de Manet são transfiguradas para nossa época.

    As transformações da imagem nos dão a impressão em câmara lenta da devastação que uma explosão nuclear produz. As figuras humanas contemporâneas têm seus esqueletos expostos, como numa imagem radiográfica, para progressivamente irem tomando as cores de um braseiro. Lentamente, tomam a aparência de restos de carne humana amorfa e sangue coagulado, com uma fita preta e amarela, indicando que tais imagens de horror devem ser proibidas ao olhar. O lixo calcinado do que foi um dia a civilização, destroços do que foi um dia a experiência do convívio humano, é interditada pela fita, tanto indicando a interdição de acesso a uma zona contaminada pela radioatividade, quanto remetendo-nos à idéia de interdição, enquanto é tempo, desse final melancólico a que leva o gozo do Outro obsceno, fora da castração simbólica.

    O que sobra da bucólica e sensual cena de Manet? Apenas uma visão pós-traumática: sangue, lixo, vidas calcinadas, cinzas, objetos de uso cotidiano e de convívio queimados e quebrados, como xícaras, pires e bule de chá.

    No final da obra, o narrador traz uma segunda citação de T. S. Eliot (1981, p. 64), na qual somos convidados, ironicamente, a tomar chá com os amigos!

    Uma análise visa fazer de um destino um estilo. As duas citações de Eliot, “I will show you fear in a handful of dust”. E, “after all, I shall sit here, serving tea to friends” sugerem, por outro lado, dois finais possíveis para a história da humanidade. Qual destino escolheremos? Haverá um estilo possível?

  • Esboço de uma moldura para as obras de Lenir de Miranda

    Jean Lancri
    Doutor e professor na Universidade de Paris , Sorbonne
    Artista plástico - autor de L´ìndex montré du doigt
    Paris, França 2003

    (Treze pequenas notas sobre as relações dessas obras com as de Joyce)

    1. É possível estabelecer a dimensão das obras de L. de M.? Não, provavelmente. Não que essas obras sejam de tamanho imenso ou que se revelem em número infinito, mas simplesmente porque cada uma delas abre em seu próprio flanco uma espécie de buraco.
    2. L. de M. procede, de fato, da seguinte maneira. Ela toma um texto — veremos mais tarde que não se trata aqui de um texto qualquer –, um texto em língua estrangeira (para ela, artista brasileira, um texto em inglês) e põe-se a sonhar com ele. Logo ela termina por decifrar um outro “texto”, um texto segundo que ela tenta então integrar ao primeiro.
    3. Enxerto difícil. Até mesmo impossível. O que não significa que eu me oponha a L. de M., muito pelo contrário. Pois este texto segundo que ela se dá o trabalho de suscitar é um texto apenas metaforicamente, pois trata-se, no mais dos casos, de uma pintura acabada. Assim, L. de M. encontrou uma maneira de integrar o texto literário a uma obra de pintura, que ela pensa estar decifrando através desta última, de forma que esse texto literário venha, por sua vez, cifrar sua pintura. É assim que, para L. de M., literatura e pintura tornam-se reciprocamente as chaves uma da outra, e isso, às vezes, beira a vertigem.
    4. Pois o texto inicial escolhido por L. de M. não é um texto qualquer. Trata-se do tal Ulisses de Joyce, juntamente com, logo em seguida, o Finnegans Wake do mesmo autor. Nada menos, portanto, do que duas das obras mais ambiciosas, controversas e enigmáticas do século XX, põem L. de M. ao trabalho.
    5. Ora, Joyce começou também escolhendo um texto. No caso de Ulisses, foi aquele, mais prestigioso impossível, da Odisséia; (para seu Finnegans Wake, qualquer texto serviu, ao que parece, o mesmo propósito). Daí ele sonhou sobre o texto até decifrar, através desse texto inicial, um outro texto, um texto segundo que ele integrou ao primeiro de tal forma que tanto um quanto outro assumem, para ele, a mesma importância, e se tornam reciprocamente as chaves um do outro. Reconhece-se, aí, o processo de criação que L. de M. se esforça a reproduzir, tanto que ela tenta, de seu lado, transportar o modelo joyceano do campo da literatura àquele da pintura.
    6. Pelotas ou Porto Alegre: nada de mais afastado, aparentemente, de Dublin, da verde Erin. E no entanto: pelo toque de uma artista, L. de M., que se esfalfa a reiniciar a máquina de fábulas de Joyce, essas duas cidades do Brasil não começam, por sua vez, a tornar-se os avatares contemporâneos da antiga Ítaca ou da longínqua última Tule, ou seja, dessa cidade-labirinto que um certo Leopold Bloom, pelo toque de Joyce, pôs-se a percorrer, num certo 16 de junho de 1904, para encontrar um julgamento final muito quotidiano, quando um Doomsday [dia do juízo final] se reduz a um mero Bloomsday [dia do florescimento]?
    7. Embaixo de Ulisses, portanto, há a Odisséia: para Joyce, uma lenda precisa comanda a intriga, organiza o estilo, distribui os capítulos e os personagens, orienta os cenários. E, da mesma forma, para L. de M., embaixo da pintura, há Ulisses (quando não é Finnegans Wake): uma página lida de um desses livros (até mesmo uma frase, uma simples palavra) orienta a fatura, distribui as texturas, organiza os temas, comanda os modos de expressão e de exposição.
    8. Quer dizer que as obras de L. de M. ilustram as de Joyce? De maneira alguma. O mérito de L. de M., convém repetir, consiste em dar nova partida no motor joyceano: em fazê-lo funcionar novamente, em pintura como em literatura, ou ao menos em tentar fazê-lo.
    9. Lembramo-nos do fim de Finnegans Wake: uma longa frase termina em uma palavra (o artigo “the”) que, ao mesmo tempo em que fecha o livro, se encaixa logo na primeira palavra da obra: riverrun (literalmente, corre o rio). Isto “sem fim”: fin negans. Não significa, portanto, da mesma forma que ela abre e fecha, para se reabrir logo em seguida, o reino do tempo? Não mostra, portanto, a figura do Tempo, que deve se associar imperiosamente com a do rio (river) que corre (run) sem parar, e que este rio deve ser prioritariamente associado à figura da mulher, ribeirinha absoluta e verdadeira rainha das margens do rio [reine de la rive] do tempo que passa?
    10. Assim, não é de surpreender que seja uma mulher, L. de M., que reivindica solenemente o privilégio de tornar-se, pelo caminho de seu trabalho de artista, esta rainha das margens do rio que consoa, tão bem para aquele que a escuta em francês, com a abertura do livro [riverrun]? Sim: L. de M. assume essa figura soberana que orienta o fluxo das palavras e o afluxo das metáforas fluviais de Joyce, desde o leito do rio Liffey ao leito de Molly Bloom, passando por Anna Livia Plurabelle.
    11. Afluxo de palavras, fluxos de frases: assim vai a obra de Joyce. Afluxo de pinceladas e fluxos de pintura: assim vai a obra de L. de M. Para um, trata-se de um oceano de textos: exemplarmente, o Finnegans Wake. Para a outra, um mar de pintura que leva consigo tudo em seu fluxo tumultuoso. De uma saga do mar [mer] (mas também da mãe [mère]) que desvela em seu curso as identidades: exemplarmente, o Passaporte de Ulisses.
    12. Nesta obra tão particular de L. de M., de que se trata? De uma maneira de designar nossa identidade ao nomadismo, de tornar nossa identidade para sempre vagante. Pois nada permanece fixo quando cada um, como é aqui o caso, é convidado a colar sua foto de identidade sobre um fluxo, sobre um mar de pinturas, sobre um oceano de pinceladas. Assim, todo cada, pelo instrumento deste visto singular, é convidado a deslizar seu rosto sobre a figura de Ulisses, aliás de Leopold Bloom, aliás de Seja Quem For; assim, cada um se vê forçado a escorrer para a figura da humanidade inteira, através de metamorfoses e transferências que a traficaram antigamente de Ítaca a Dublin, que a transportam hoje em dia pelas ruas de Pelotas, assim como pelas de Porto Alegre.
    13. Desta maneira, a obra de L. de M.: por metáforas, metamorfoses e transferências. É assim que ela progride, tal qual um work in progress muito joyceano, sempre retomado, jamais acabado. À imagem do grandioso projeto de Finnegans Wake, a Grande Obra de L. de M. não se propõe a nada menos do que coincidir com o mundo: o mundo físico ao qual ela toma emprestado suas leis, o mundo humano cujos enigmas ela esposa, e ao qual ela entende conferir o rosto infinito dos vivos. E é assim que as obras de L. de M. são, para todos nós, um instrumento de conhecimento íntimo. Errático e enigmático à vontade, o retrato de mim mesmo que eu vejo nelas não é nunca, de fato, aquele que eu esperava.
  • Lenir de Miranda: um caso pictórico da volta à vida do mito de Ulisses na civilização latino-americana contemporânea

    José Emílio Burucúa
    Buenos Aires, 16 de agosto de 2009.

    No século XX, o complexo mítico de Ulisses, de suas façanhas, seus parentes, amigos e inimigos, conheceu na América Latina apropriações importantes de diferentes naturezas. A primeira se articula com os desenvolvimentos literários da mestiçagem cultural no México dos começos do século. Trata-se do Ulises criollo, publicado em 1935, no qual seu autor, José Vasconcelos, Ministro da Educação do governo surgido da Revolução mexicana, enuncia, desde a advertênciado livro, uma série de propósito desse texto autobiográfico, paralelos à história do herói grego:

    “A presente obra […] contém a experiência de um homem e não aspira à exemplaridade, senão ao conhecimento. O mistério de cada vida não se explica nunca e apenas se nós mesmos podemos resgatar do esquecimento umas quantas cenas do panorama intenso em que se desenvolveu nosso momento. […]

    “O nome dado à obra inteira se explica por seu conteúdo. Um destino que, como um cometa, brilha e logo se apaga em largos trechos de sombra, junto ao ambiente turvo do México atual, justifica a analogia com a clássica Odisséia. Por sua vez, o qualificativo crioulo o elegi como símbolo do ideal vencido em nossa pátria desde os dias de Poinsett1, quando traímos a Almán.2 Meu caso é o de um segundo Alamán colocado de lado para comprazer a um Morrow.3

    O crioulismo, ou seja, a cultura de tipo hispânica, no fervor de sua luta desigual contra um indigenismo falsificado e um saxonismo4 que se disfarça com o carmim da civilização mais deficiente conhecida pela História, tais os elementos que tiveram combate na alma desse Ulisses Crioulo, do mesmo modo que em cada um de seus compatriotas.”

    Esse Ulisses é, assim, um polytropos de nova cunhagem, um viajante cifrado pelos vários mundos culturais: o do passado remoto dos indígenas, o da tradição hispânica, o do modernismo revolucionário, um herói que passou também por sua Ilíada durante os anos da guerra civil e que, após ter visto as cidades e os costumes de muitos homens, regressou ao México, a sua Ítaca, para construir nela uma forma enaltecedora da educação e da vida coletiva. É provável que o Ulisses de Vasconcelos não quisesse voltar a partir, e buscasse, portanto, deixar descumprida a profecia – recolhida por Homero –, de Tiresias, no Hades.

    A segunda apropriação latino-americana do estilema5 de Odisseu, a que hei de referir-me, é a do brasileiro Haroldo de Campos, cujo poema Finismundo: a última viagem, incluído no livro Crisantempo,6 apresenta um Ulisses pelo menos bifronte. Sua primeira faceta está situada nos antípodas da versão crioula de Vasconcelos, pois ressuscita a visão dantesca do herói que, por sua vez, desdenha as delícias do regresso à pátria, do gozo de Penélope e do abraço de Telêmaco para lançar-se ao conhecimento do mundo até seus confins.

    Claro que o Odisseu de Haroldo de Campos aspira chegar mais longe que o de Dante, sempre limitado à esfera terrestre. O de Haroldo é, todavia, mais ousado: quer atravessar a proibida / geografia do Éden rumo ao transfinito, converter o destino em desatino de explorar o não-mapeado / Finismundo: ali / onde começa a infranqueada / fronteira do extracéu. Haroldo nos diz que Ulisses perdeu seus companheiros e que seu barco naufragou, mas parece antes que o herói sobreviveu ao mito, transformou-se em urbano, no habitante de uma cidade que muito bem poderia ser a megalópolis São Paulo.

    Uma tecnologia imanente substituiu o extracéu que se anelava. Tal é a segunda faceta do Ulisses de Finismundo, a de um condenado por sua hýbris7 que contesta a figura delineada por Dante na Divina Comédia.8

    Não obstante, o inferno do Ulisses brasileiro de hoje não é o do inframundo obscuro, senão o da cidade, do acaso computadorizado na luz de um líquido cristal verdefluente, postal desvalorizado do Éden onde capitulou a hýbris.

    O tormento não procede das chamas que envolvem em um pequeno torvelinho as almas corporizadas de Ulisses e Diomedes, como na Comedia: trata-se antes do produto do trabalho de açuladas sirenes [que] cortam teu coração cotidiano.

    No Rio Grande do Sul, a artista plástica Lenir de Miranda, em nossos dias, já há um bom quarto de século, vem frequentando, com inspiração, a figura de Ulisses. Seu ponto de partida foi a épica aluvional, caótica e inabarcável de Joyce, mais que a épica dilatada, translúcida e comunicável, de Homero. Porém, para dizer a verdade, ainda nos momentos em que Lenir insistiu mais acerca da derivação joyceana de suas imagens, não deixa de assomar a imensidão marinha da antiga Odisséia.

    As dimensões nas quais nossa pintora tem trabalhado vão desde uma escala próxima ao monumental, com peças realizadas sobre tela que alcançam os dois metros de largura até os tamanhos in quarto ou in octavo nos papéis nos quais ela esparramou as têmperas de seus livros e instalações.

    Poderíamos imaginar que existe uma correspondência entre as medidas e a alusão a um ou outro texto, que talvez o concentrado no dia 16 de junho de 1904 (Bloomsday) aparece com maior espontaneidade nas obras de pequeno formato, enquanto as peripécias dos vinte anos do exílio de Ulisses as representa melhor nas telas grandes.

    Que pode haver de mais direto e imediato que supor representado em um livro-diário, ou em um objeto equiparável a isso, por seu tamanho, o acontecer de um dia? De modo equivalente, o que poderá ser mais coerente do que imaginar as navegações e o vagar do rei de Ítaca figurados em suportes que tendem ao gigantismo de quadros dignos de habitar paredes? Contudo, essa correlação não existe, e daí deveríamos, quiçás, extrair uma primeira aprendizagem das apropriações que Lenir nos propõe do mito de Ulisses: ora em um dia, ora em décadas, as aventuras do homem com quem terminamos nos identificando encerram o paradoxo de ter a amplitude do horizonte no mar e caber no diminuto espaço de algo portável, ou no breve tempo de um relato, a contradição de propor-nos o prazer das identidades flutuantes conforme o vaivém das águas (que há de mais exaltante que a construção de si mesmo?), e mostrar-nos o horror de ser só Ninguém no avatar presente e futuro do mundo.

    Um acrílico sobre tela, de 1987, A passagem do Tempo com Ulisses diante do Chafariz, estabelecia já um rébus em torno ao episódio joyceano ou homérico ao qual a imagem deveria necessariamente remeter-se. Aí estão o mar, o tempo que flui sob a forma prosaica e irônica do relógio-pulseira, a atenção multiplicada nos olhos do vigilante e astuto Ulisses. Mas o chafariz, a que se refere? Por acaso, à fonte coroada pelo busto do cirurgião irlandês Philip Crampton, cientista do Século das Luzes, encontrado por Bloom em sua incursão ao Hades dublinense?9 Se assim fosse, o chafariz significaria a ancoragem da vida fugaz na memória de uma figura benfeitora, colocada no reino dos mortos. E, dado que aquele monumento aparece também no Retrato do artista quando jovem, como disparador da reflexão estética do personagem, por que não supor que Joyce tenha unido a visão da fonte, por parte de Ulisses-Bloom, com o conjuro parcial, mas mesmo assim eficaz, da morte tal como a arte costuma produzir?

    Lenir de Miranda capturou em seu quadro, resultado do jogo entre o grotesco do desenho e o belo esplendor das cores, aquela concatenação sutil de idéias sobre a morte, a lembrança e as pretensões mágicas da arte.

    Ao livro de artista Fim de Expediente, apresentado em 1998, no qual nossa Lenir experimentou o contraponto do que não seria precipitado denominar as vozes autônomas, justapostas e, finalmente, sintonizadas, da escrita e da pintura, há de associar-se outro acrílico sobre tela, realizado em 2000: um retrato de Ulisses, que procura ser documento de duas identidades.

    Aí se superpõem o contorno vermelho de Leopold Bloom, caricatural, risível, com seu perfil e óculos que delatam o judeu desenraizado, ao mesmo tempo característico e estrangeiro nas cidades modernas do Ocidente, de Dublin a Porto Alegre ou Buenos Aires ou Pelotas, por que não?, e o contorno azul do Ulisses marinheiro da Odisséia, com seu torso largo e desnudo de herói antigo, assediados ambos pelas mãos que pretendem apanhá-los ou deter seu movimento combinado.

    Uma dialética semelhante é a que reúne o segundo livro de artista, Passaporte de Ulisses, apresentado por Lenir em 2003, com o grande acrílico Ithaca 17 com botina e chave de entrada.

    O Passaporte, cujo número 1 está no James Joyce Centre, em Dublin, cumpre as funções de um salvo-conduto de exilados para a viagem de regresso cumprida por todos, consoante ao nostos do velho Odisseu, desde a ilha de Calypso e a parada na terra feliz dos feáceos, até a chegada a Ítaca, ou então com o caminho de volta, seguido por Leopold Bloom e Stephen Dedalus, de Beresford Place até a casa de Bloom e o quarto onde jazia Marion-Molly.

    O livro contém paisagens recorrentes e monótonas do mar nas quais se abrem figurações e retratos de seres estranhos, outros passageiros de outros nostoi cujos itinerários cruzam com os nossos e compõem, por fim, o tecido polifônico dos pensamentos díspares deles e nossos, convertidos todos em pensamentos fronteiriços, para usar a expressão com que o crítico francês Pierre Restany se referiu ao Passaporte confeccionado por Lenir, os únicos capazes de albergar as marcas da humanidade perene na experiência contemporânea da mundialização de bens e pessoas.

    Por sua vez, a pintura Ithaca 17 representa o lugar da chegada ao qual nos permitiu ingressar àquele Passaporte: trata-se de nossa casa, do lugar das lembranças e das seguranças e, não obstante, nada parece estar onde acreditávamos. Colaram-se as cores do mundo ao ar livre, suas atmosferas, seus ventos, e resulta que são lindos, tais quais o azul que irrompe na cena e escalavra as paredes: A arvorecéu de estrelas pejadas de húmido fruto noitazul.10, 11

    A série MEU NOME É NINGUÉM é a última e persistente incursão de Lenir no mito que nos ocupa, feita com quadros de grande formato, nos quais a narrativa homérica toma a dianteira. Ninguém Chegando, de 2007, representa o corpo exânime de Odisseu, provavelmente na costa da ilha de Nausicaa e Alcinoo, porque o personagem parece esgotado devido ao esforço de ter lutado contra a tormenta, e não adormecido, na praia de sua Ítaca natal, pacificamente abandonado ali, tal qual o fizeram os amáveis feáceos. Se bem pudéssemos pensar que a mole vermelha, no meio do mar, corresponda ao barco dos feáceos petrificado por Posseidon, como castigo pela desobediência implicada pelo socorro a Ulisses e por tê-lo levado de volta a casa, convertido em um indivíduo desolado e maltratado pelos deuses, ele, um simples mortal que se deu bem apesar de tudo.

    Meu nome é Ninguém, pintura de 2008, exibe sem rodeio as formas dinâmicas e ágeis de um ser humano que avança, o chuço em riste, como Ulisses atacou o adormecido Polifemo. Ninguém ouviu seu canto, acrílico e assemblage, feito em 2009, propõe-nos um novo enigma: este lugar de exuberantes plantas azuis, e de cerca vermelha, será por acaso o palácio de Alcinoo, onde Ulisses, ainda Ninguém, ouviu, banhado em lágrimas, o canto de Demódoco sobre suas próprias aventuras? Ou será talvez a mesma Ítaca e o mégaron12 de Odisseu ao qual seu dono legítimo se aproximou como Ninguém para ordenar a Fêmio que soltasse uma singular melopeia de bodas, destinada a tapar os gritos dos Pretendentes, um canto cuja beleza bastaria para perdoar a vida do aedo depois da matança?

    Em Nostos, realizado em julho de 2009, vemos o mar, de cor púrpura escura, tal qual o descrevem os epítetos da épica grega, a rocha clara, ameaçante, e a cova do ciclope. A superfície do mar recobra em parte sua coloração azul, que combate contra a púrpura da região escura da água e o branco da espuma em Ninguém Jogando.

    Os mesmos elementos, transtornados pela inclinação do horizonte, fragmentados e recompostos, encontramos em Sol Negro, pintado e armado em agosto de 2009. Do segundo quadro ao último que mencionamos, o episódio de Meu nome é Ninguém, extraído do canto IX da Odisséia, e do capítulo 12 de Ulisses, sofreu uma transmutação dramática.

    A representação de 2008, por meio da figura frágil do herói guerreiro, amparado muito mais no exercício da astúcia do que na força, pulsa uma veia cômica e converge, em tal sentido, com a interpretação que viu nesse episódio o chiste mais célebre e misterioso da história da literatura.13

    Que os ciclopes abandonem Polifemo pela presumida estupidez de sua queixa, a propósito de que Ninguém o cegou, torna-se um acontecimento inverossímil, absurdo, ridículo. Homero, como uma criança, ocupa-se de nos fazer rir com o jogo de palavras.

    Definitivamente, Ninguém, ninguém agiu, escondido ou em segredo. Mas, ao mesmo tempo, o recurso de Ulisses termina por revelar-nos que tantas figuras e metamorfoses do personagem fizeram com que, no fundo de sua alma, Odisseu seja ninguém, o judeu Leopold Bloom também seja ninguém, ainda que acusado das piores perfídias pelo inconsistente Cidadão na taberna de Barney Keernan.

    De modo que a comédia deslizou sem solução de continuidade até a tragédia de uma alma devastada e de uma existência à qual não cessam de ameaçar Polifemo cego e o Cidadão dublinense. A ambos cabe a metáfora do tirano, vinculada por Jean Dorat ao ciclope, entre 1569 e 1571.14

    O Sol Negro, pintado e ensamblado por Lenir nesses dias, que alude não só aos versos do canto IX da Odisséia, senão a uma imagem célebre da melancolia, cunhada por Gérard de Nerval,15 da conta desse transtorno terrorífico que nos leva ao desespero de suspeitar que, no transfinito de Haroldo de Campos, nos pensamentos fronteiriços do Passaporte distendido por Lenir de Miranda, tão só nos espreita a tirania16.

    Buenos Aires, 16 de agosto de 2009.

    José Emílio Burucúa, doutor em filosofia e letras da Universidade de Buenos Aires, atualmente professor titular de Problemas de História Cultural na Universidade Nacional de San Martin, Argentina. Autor de vários livros e artigos sobre temas de história cultural da modernidade européia e latinoamericana. Entre seus livros, destacam-se: Corderos y elefantes: La sacralidad y la risa em la Europa de la modernidad clássica (siglos XV AL XVII) -2001; Historia, arte, cultura: De Aby Warburg a Carlo Ginzburg -2003; Historia y ambivalencia: Ensayos sobre arte -2006; Cartas Norteamericanas -2008.

    Tradução de Luiz-Olyntho Telles da Silva, psicanalista, escritor e tradutor, é membro fundador da Biblioteca Sigmund Freud, onde mantém clínica e atividade de ensino. Convidado por diversas instituições psicanalíticas, já apresentou seu trabalhos, além de Porto Alegre, em Florianópolis, São Paulo, Rio de Janeiro, Vitória, Salvador, Recife, Buenos Aires, Montevidéu, Barcelona, Canes, Paris e Nova Iorque. Seus artigos estão publicados também na Argentina, Espanha, França, Portugal e no Uruguai. No Brasil publicou Pagar com palavras [Org.] (Movimento, 1984), Da miséria neurótica à infelicidade comum (Movimento, 1989 – 1ª ed.), Freud / Lacan: o desvelamento do sujeito (AGE, 1999), Leituras (AGE, 2004), e Incidentes em um ano bissexto – contos (EDA,2009). www.tellesdasilva.com.br

    Notas

    1. Joel Roberts Poinsett (1779-1851), abogado y diplomático norteamericano, fue agente de su país en México entre 1822 y 1825. En este año, fue designado primer embajador de los EE.UU. en México, donde se involucró en los turbulentos asuntos de la política interna. Se lo llamó de regreso a su patria y allí fue secretario de guerra entre 1837 y 1841.
    2. Lucas Alamán y Escalada (1792-1851), político e historiador mexicano, estudió en el Real Seminario de Minería de México, en Freiburg, Göttingen y París. Representó a su país ante las cortes de Cádiz en 1812 para promover la división del imperio español y el autogobierno de sus regiones, según los proyectos dieciochescos del conde Aranda. Fue ministro de relaciones exteriores en el gabinete del presidente Guadalupe Victoria, tras la caída del emperador Agustín Iturbide en 1825. Renunció muy pronto por desinteligencias con los otros ministros, pero volvió a ser canciller mexicano entre 1830 y 1832 y entonces se destacó por su apoyo a la industria, a la colonización europea y a la firma de un tratado de límites con los EE.UU. En sus Disertaciones (1844), Alamán defendió la herencia cultural española de México y en su Historia de México en cinco volúmenes, publicada de 1849 a 1852, criticó el primer movimiento independentista de Hidalgo y Morelos a la par que abogó por un auxilio europeo que defendiese la libertad e independencia mexicanas, tras la derrota y el despojo territorial sufridos en la guerra con los EE.UU. En buena medida, los partidarios de la coronación de Maximiliano de Habsburgo como emperador de México en la década del ’60 buscaron inspiración y fundamento en estas ideas de Alamán.
    3. Dwight Whitney Morrow (1873-1931), embajador de los EE.UU. en México de 1927 a 1930. Desenvolvió allí una hábil acción diplomática para rehacer los vínculos entre las dos naciones, tras la nacionalización de empresas y otros intereses norteamericanos en México.
    4. De saxão (N. do T.)
    5. Termo com que por vezes se designa um traço ou constante estilística (N. do T.).
    6. Campos, Haroldo de, No espaço curvo nasce un Crisantempo. San Pablo, Perspectiva, 2004, pp. 55-59.
    7. Desmedida (N. do T.).
    8. Infierno, XXVI, vv. 90-142. Un análisis filológico muy detallado del poema de Haroldo de Campos, de sus alusiones no sólo a Dante y Homero, sino a la Amorosa visione de Boccaccio, a Joyce, Mallarmé y Melville, se encuentra en el bello libro de Boitani, Piero, Sulle orme di Ulisse. Bolonia, Il Mulino, 1998, pp. 165-172.
    9. Joyce, James, Ulysses, Buenos Aires, Santiago Rueda, 1966, capítulo 6, p. 122; capítulo 8, p. 198.
    10. Joyce, Ulysses. op.cit., capítulo 17, p. 645.
    11. Conforme à tradução de Antônio Houaiss, São Paulo, Record, s/data, p. 487 (N. do T.).
    12. O mégaron é a “grande sala” da civilização micênica. A sala retangular, caracterizada por uma abertura, um alpendre de duas colunas, e uma lareira mais ou menos centralizada cujo uso é tradicional na Grécia desde os tempos da cultura micênica, é o antepassado do templo na Grécia. Era usado para poesia, festa, adoração de deuses pessoais, sacrificios, e conselhos de guerra. Originalmente era muito colorida – feitos com a ordem arquitetônica minóica, os interiores de tijolo queimado e enormes vigas de madeira moldavam o edifício. O telhado é de telhas de cerâmica e ladrilhos de terracota. Um mégaron famoso está localizado no grande salão de recepção do rei no palácio de Tiryns, a sala principal que tinha um trono colocado contra a parede da direita e uma lareira central acompanha por quatro colunas de madeira em estilo minóico que serviam como apoio para o telhado (N. do T.).
    13. Citati, Piero, La mente colorata. Ulisse e l’Odissea. Milán, Mondadori, 2002, pp. 175-179.
    14. Dorat, Jean, Mythologicum, ou, Interprétation allégorique de l’Odyssée, X-XII et de L’hymne à Aphrodite, Philip Ford ed., Ginebra, Librairie Droz, 2000, línea 777.
    15. Nerval, Gérard de, Les Chimères, 1854. Soneto Le malheureux.
    16. Tradução de Luiz-Olyntho Telles da Silva, www.tellesdasilva.com.

  • Pintou ele verbalmente a cena para seu visitante ver?

    Lenir de Miranda artista plástica
    mestranda em Poéticas Visuais, pelo Instituto de Artes,
    Universidade Federal do Rio Grande do Sul.
    Porto Alegre, RS - Brasil

    Ele preferiu ver o rosto de outrem e ouvir as palavras de outrem pelo que a narração potencial se consumou e o temperamento cinético se aliviou.”
    (Ulisses – Íthaca / Joyce)

    Pintei a incerteza cena captada do mundo dentro/fora oh estes rostos na multidão o outro para que sua existência viva nas páginas narradas num palimpsesto de si entreguei um livroutro. Ulisses de mim aprendiz de sinais.

    “Sob que guia, seguindo que sinais?”

    Palavras e imagens são signos que explodem no caleidoscópio das cenas joyceanas.

    Nostos, de todos os Ulisses, de Homero a Joyce, a todos nós, traz a ânsia de querer regressar.

    Para onde é este regresso cotidiano? Para Ítaca, seio primitivo, em eterno retorno no corpo e na mente. Para o interior das ebulições cósmicas nascentes, no caos primordial do olhar que parte e chega diuturnamente, na plataforma 17, para a casa, às duas horas da madrugada. Bloomente irradia cosmos-palavras…

    Nostos, a última parte de Ulisses/Joyce e penúltimo episódio (17-Ítaca), é por onde se guiam meus últimos trabalhos com pintura e livros de artista. Em Joyce, Ulisses, as palavras tramam miríades de significados e imagens multidimensionais, as quais me conduzem no aparecimento da pintura, das páginas e de possíveis outras palavras.

    As palavras, em Joyce, abarcam um espaço/tempo de total plasticidade, um cubismo, que nos toma de surpresa não-linear, num caos fértil, a partir do qual visitamos mundos em infinitas expansões em nossa mente.

    Somos Ulisses, cada qual em sua nave, seus sinais, com os quais retorna em seu auto-conhecimento, através de seus pensamentos, sua linguagem, suas interpretações.

    agosto, 2002

  • Terra devastada – Lenir de Miranda

    Luiz Antonio de Assis Brasil
    Outono de 2012
    Porto Alegre - RS

    Entende-se uma obra a partir de suas referências. Impossível existir uma obra que não remeta a outra, a outra, a outra… perfazendo uma série infinita e incalculável. Isso se explica pela circunstância de que a cultura é um continuum de relações. Essas relações, por sua vez, são balizadas por parâmetros nem sempre identificáveis, o que aumenta a vertigem analítica.

    No caso desta exposição de Lenir de Miranda, o modelo é explicitado pela autora: o célebre e perturbador poema Waste Land, de T.S.Eliot, de 1922. Os adjetivos são cabais: é perturbador porque nem sempre atinamos o que Eliot quis dizer, embora reconheçamos que há, numa camada inacessível, algo que, se revelado de imediato, seria terrível demais. É o que se vê, por exemplo, nestes dois versos: Here is no water but only rock / Rock and no water and the sandy road; a aparente esterilidade e “concretude” – que lembram João Cabral – constituem uma metáfora de mil possibilidades hermenêuticas, todas inquietantes. De resto, o poema potencializa todos os avanços do Modernismo europeu – e não só: cacofonias onomatopaicas, reiterações, jogos verbais, tudo nos conduz a um fato inédito no trajeto das artes. Waste Land tornou célebre o autor, que depois seria consagrado com o Nobel.

    A interlocução de Lenir de Miranda com o poema resultou numa coletânea de experiências sensíveis, em que o uso de materiais díspares corresponde à tentativa de Eliot de capturar o leitor/espectador numa teia de sensibilidades: assim, a obra de Lenir de Miranda não é apenas um apelo ao olhar, mas à sonoridade, ao tato. Isso é visível em toda a exposição, mas é possível colher um bom exemplo em “If there were the sound of water only”. A profusão dos materiais é espantosa, pois ali estão mesclados a tinta acrílica, o carvão, o carpet, o latão, dentre outros convocados pela autora a produzirem uma impressão forte no espectador, que é jogado num vórtice impossível de ser medido ou, sequer, explicado. Ali está a água em sua representação de elemento primordial, criada a partir de grafismos quase infantis. É a água de onde surgimos, e que submerge o mundo no Dilúvio bíblico, mas também no líquido amniótico e na síntese química que tornou a vida possível neste planeta. Talvez seja a água do famoso abril de Eliot, se pensarmos em Waste Land. Trata-se, contudo, de uma água muda; não há ondas, não há marulhos, sequer a minúscula borbulhagem da respiração dos peixes. Isso permitiu a Lenir de Miranda avançar sobre a proposta poética, com algumas sugestões ópticas que complementam a imagem do terço inferior da “tela”. São “sonoridades visuais”, com perdão da imagem algo elíptica e retórica. As cores, poucas, instalam uma monocromia do cinzento rompida por breves exclamações do vermelho; por breves, são mais intensas e geradoras de impacto. Se atentarmos para as simetrias – essa eterna busca do ser humano – elas estão lá, na horizontalidade de uma linha em que o vermelho está representado três vezes, sendo que o centro é maior do que os outros que lhe estão ao lado. É a sonoridade do compasso ternário, talvez o mais praticado de todos. É, enfim, a tríade como uma referência ancestral e infinita. O mais curioso é que esta pintura não traz qualquer espécie de quietação; ao contrário, é um elemento desestabilizador, pois sua regularidade é aparente: as pequenas assimetrias são indicativos de que “algo não vai bem” – e aí está a arte, em sua plenitude.

    Pretendi apenas, nesta interpretação pessoal, propor uma espécie de “guia de leitura” desta amostra de Lenir de Miranda. O espectador saberá fazer suas escolhas e, com sua sensibilidade, concluir por si mesmo qual a intenção de cada uma das peças exibidas. Para isso será necessária abertura intelectual de quem as vê, mas também, e principalmente, abertura emocional.

    O que importa, disso tudo, é que estamos perante uma artista inquieta, capaz de desassossegar e, com isso, refazer o mundo e suas perplexidades. O domínio técnico é uma das parcelas de seu talento, o qual vai muito além disso, pois toca as vertentes mais íntimas da existência humana.

    Sairemos diferentes, desta exposição. Talvez mais sábios, sim, mas também melhores.

  • Texto de orelha para o livro MEU NOME É NINGUÉM

    Luiz-Olyntho Telles da Silva, psicanalista, escritor e tradutor, é membro fundador da Biblioteca Sigmund Freud, onde mantém clínica e atividade de ensino.
    Porto Alegre, Novembro de 2009

    Nasce um novo dia anunciado pelos róseos dedos da aurora. É a força plástica de Homero a iluminar os percalços do retorno de Ulisses. Para casa? Não! Para uma nova aventura.

    A figura de Ulisses é forte. Ocuparam-se dela poetas como Eurípides, Horácio, Dante, Shakespeare, Pope, Tennyson, Eliot e Joyce. No nosso continente, lembra o crítico Burucúa, o mexicano José de Vasconcelos escreveu um Ulisses Criollo e o nosso Haroldo de Campos criou Finismundo: a ultima viagem. Na pintura, depois das negras figuras da cerâmica grega, chama-me a atenção, entre outros, o neoclássico John William Waterhouse com o seu impressionante Ulisses e as sereias. Em comum entre todas as figuras, seu caráter ilustrativo.

    Lenir de Miranda faz aí um corte epistemológico –usando uma expressão de Bachelard. Sua arte já não é mais ilustrativa – como as aquarelas de William Blake feitas para ilustrar a Divina Comédia, numa das quais se pode ver Ulisses, junto com Diomedes, ambos condenados ao oitavo círculo do Inferno – e sim, recorrendo a uma expressão da artista, um atordoamento de imagens diversas. Linda expressão! Pode ser tomada, se não como tradução, todavia como umdichtung, como transcriação do caráter polítropon, multifacetado, de Ulisses, tal como aparece no primeiro verso da Odisseia. Lenir de Miranda– surpreendida pelos róseos dedos da aurora, depois de ter reconhecido Ulisses na trama original de seus recortes, já não pode, como outros, senão retornar ao homérico poema.

    A arte escolhe seus autores. Ulisses escolheu agora Lenir e, conforme ao seu estilo, sedutor, arrasador, tomou-a por inteiro, eroticamente, sem piedade, fazendo-a produzir à exaustão.

    Miguel de Unamuno dizia que o homem é a sua circunstância. A ideia do conceito de retorno é esta: voltar às origens com os recursos da sua circunstância, com os recursos contemporâneos. Assim retornou Ulisses a Ítaca, Sou uma parte de tudo que tenho encontrado, diz o herói nos versos de Tennyson, cujo poema foi reconhecido como o primeiro retorno moderno ao tema. Assim retornou também Ariadne, fazendo do fio desenvolvido a elasticidade de sua memória. Assim retornaram os renascentistas, com os novos recursos de perspectiva e claro-escuro, ao classicismo Greco-romano – para alguns, a angústia de Fausto é um renascimento do descontentamento de Ulisses. Assim retornou Althusser, com os novos estudos sobre a linguagem, a Marx. Assim retornou Freud aos abandonados mitos e também Lacan – linguística, estruturalismo e topologia mediante – a Freud. Assim retornaram Bloom e Stephen, através da música, da literatura, da Irlanda, de Dublin, de Paris, da amizade, da mulher, da prostituição, da influência da luz-de-gás ou da luz de arco e de descentes lâmpadas incandescentes sobre o crescimento das árvores heliotrópicas até o desfalecimento do heliotrôpego Stephen. Diferente de uma regressão ao status quo ante, o retorno é um reestudo da memória histórica, com os recursos de hoje.

    Lenir de Miranda retorna ao Ulisses Homérico com sua circunstância: Joyce, Eliot, Gerard de Nerval, Duchamp, Mallarmé, carbono, restos metálicos do sambaqui quotidiano, e, também, da singela e organizadora cera de todos os tempos. Sua Ítaca é o mundo interior. Precisa retornar, com vontade, para, desde aí, ulissíaca, explorar novos mundos. Em nostos, o retorno grego, Lenir lê nostalgia, nostos + algia. É seu modo de nos avisar que nenhum retorno é sem dor.

    A angústia do Ulisses em todos os nós é o nome. Estou tornando-me um nome, diz o personagem no verso 11 de Tennyson. A conquista é difícil. Mais fácil ser Ninguém! Mais fácil e mais difícil! Mais fácil pela irresponsabilidade tática frente ao monstruoso ciclope: – Quem te ataca? /- Ninguém me ataca! /- Então não incomode. Difícil por denotar uma renúncia à pressuposta grandeza do nome de batismo: Udi é Ninguém, diferente, mas homófono a Odi, o ódio anunciado pelo avô Autólico. O poeta Juarroz diz que se deve escrever o nome com minúsculas. E então a presente série Meu nome é ninguém.

    Seus críticos destacam, no caminho de Lenir até ela, a passagem pelos livros de artista, e, entre eles, o Passaporte de Ulisses. É verdade! A marca primeira de uma viagem é um passaporte. Ninguém viaja sem ele. Leia-se a frase em toda sua polifonia. Em tempo nenhum, ninguém viajou sem ele. Senhas e contrassenhas sempre foi um requerimento de fronteira, de qualquer fronteira! É necessário algum índice de reconhecimento para a travessia desta no mans land, deste nada situado entre um lugar e outro. Observemos, justamente no seu imenso Nostos, a presença de restos de ferros de construção, destes que os pedreiros usam para firmar uma forma de concreto; aqui, sem as formas, pinçam o vazio! Já não há a forma para atravessar de um lado ao outro. Tal a fotografia requerida pelo Passaporte, é preciso colocar-se no vazio para criar. Cada um tem de criar suas próprias sinapses.

    A arte de Lenir de Miranda é efervescente, criativa e criadora: atesta-o as Boas vindas de Cézar Prestes, Diretor do MARGS; confirma-o, entre outras, as críticas de Maria Amélia Bulhões que, retomando a relação de Lenir com Ulisses, por meio de Joyce, desde 1977, destaca seu empenho em afirmar a vida contra os terrores do inconsciente. Icleia Borsa Cattani, desde o Passaporte, diz, com todas as letras, sermos, cada um, timoneiros de nosso próprio regresso e que vagamos no exílio dos dias até o retorno a nós mesmos; Walter de Queiroz Guerreiro valoriza o aspecto heráldico, no qual as cores têm sempre uma outra conotação; o argentino José Emílio Burucúa, depois de situá-la no concerto das obras dedicadas a Ulisses, analisa-a quadro a quadro; enquanto para o francês Jean Lancri, o valor de sobreposição palimpsestica está presente nas obras: o mar, como no Joyce de Finnegans Wake, é também a mère, a mãe, esse mar de muitas vozes, como dizia Eliot em The dry salvages. Para efetuar o nostos, há que cruzar esse mar!

    Esse é o Ninguém de Lenir de Miranda, sempre uma volta para o recomeço, tal como nos últimos versos de Alfred Tennyson, aliás inscritos em uma cruz, na Antártida, em homenagem ao seu desbravador Robert Falcon Scott, que aí morreu:

    Um igual ao temperamento dos corações heroicos,
    Tornado fraco pelo tempo e pelo destino, mas forte em decidir
    Lutar, buscar, encontrar, e não se render.

  • Quem sou eu? Quem é Ulisses?

    Maria Amélia Bulhões
    Porto Alegre, novembro de 2009.

    Pode-se dizer que a memória de grandes mitos retorna na arte contemporânea ressignificada, procurando responder os grandes enigmas da vida de uma forma poética e ambígua, fazendo parte das estratégias com que o artista atual trabalha a dúvida. Os mitos arcaicos são trabalhados em seus possíveis sentidos simbólicos, buscando uma ampliação de significados. No campo da arte instaura-se socialmente o espaço do enigma na luta do homem contra a angústia da finitude. Assim, o Ulisses de James Joyce, ao refletir sobre sua vida e seus dramas cotidianos, refaz o mito grego da Odisséia de Homero, enraizado na Dublin do início do século XX. De forma semelhante, Lenir de Miranda recria o seu mito de Ulisses com um enorme peso psicológico, refletindo de maneira muito pessoal sobre as circunstâncias agressivas em que vive o homem hoje e sobre tudo o que a cerca. Entretanto, uma forte identidade com esse autor é descrita pela artista: “[…] interessante contar que li Ulisses de Joyce em 1977 e fiquei surpresa, pois não sabia nada dele, me tomou de assalto, era tudo que eu queria ler; algo profundamente estranho, admirável. Não pensei em pintar a partir dali, mas fiz uns módulos pequenos, mais por acaso, fui continuando e repetindo, quando me dei conta, ao juntá-los, eu vi que as cenas eram tão desconexas, tão diversificadas, embora formassem uma totalidade, que eu, sem pensar conscientemente, vi, de imediato, que aquilo era Ulisses/Joyce — nunca esqueço esse momento totalmente epifânico. A série começou muito tempo após ter lido Ulisses pela primeira vez”.

    O livro de Joyce está organizado em capítulos, cada um deles cobrindo aproximadamente uma hora do dia e referindo-se a um episódio específico da Odisséia de Homero, tendo associado a si uma cor, uma arte, uma ciência ou órgão do corpo humano. Essa elaboração complexa e caleidoscópica do mito, associada a uma realidade prosaica e cotidiana, é retomada por Miranda no desenvolvimento de seu trabalho. Ela não tenta ilustrar as cenas do Ulisses homérico ou joyceano; sua aproximação dá-se por uma atitude que se interiorizou. Percebe-se uma adesão à literatura, que se manifesta numa espécie de mergulho/flutuamento, onde se misturam evocações de passagens que ficaram retidas no inconsciente e um ato de pintar lúcido e consciente. A artista constrói uma narrativa fragmentada, feita de partes que se colam, se sobrepõem e se justapõem, fazendo emergir de uma terra devastada o seu próprio Ulisses, como um anti-herói do nosso tempo. São memórias de guerras e erosões, que se constroem pela colagem de diferentes materiais, como arames, pedaços de metal enferrujados ou plástico. Essas sobras, muito bem articuladas ao processo pictórico, criam espaços ambíguos, deixando os rastros de uma busca pessoal que produz um significado além do horizonte visível. O uso desses elementos desgastados evoca o enigma de uma origem ali materializada, lembranças, restos ou resíduos que retornam de um lugar nas profundezas da memória. Eles abrem uma cadeia de sensações e pensamentos em busca de alguma história que se encaixe naqueles fragmentos abandonados sobre a superfície pintada. Miranda, como Joyce, é, ao mesmo tempo, universal e pessoal.

    Referências como: Nostos, Seu canto, Meu nome é ninguém, Sob que guia, seguindo que sinais? apontam os questionamentos que a artista se faz a partir de uma balanceada articulação entre o conceito e a emoção dramatizada. As cores rebaixadas de sua paleta parecem querer ingressar em um universo arquetípico, onde as paisagens se confundem de forma misteriosa. Como diz a artista, em sua dissertação de mestrado, Nostos é a nostalgia de todos nós, é a vontade de regressar e a dor dessa viagem. Nostalgia que ela enfrenta com o gestual impulsivo da tinta acrílica e das linhas de carvão, expressando um processo intuitivo  e um certeiro desejo de precisão, a exigência de liberdade e a necessidade de estruturação, juntas formando um panorama inconcluso e ambíguo. O empenho de afirmar a vida contra os terrores do inconsciente é mais importante na análise da significação dessas obras do que qualquer possível proximidade das imagens. Suas significações situam-se além de intenções formais, construindo-se em territórios do imponderável, da dúvida e do mistério. Dizem de ausências que jamais serão preenchidas, de faltas de todos os tipos. Seus processos de criação buscam ultrapassar o fim e o desaparecimento, enfrentando “a grande perda”, que tanto assusta a cultura ocidental contemporânea.

    As soluções empreendidas pertencem à ordem conceitual do trabalho. As idéias lançadas fisicamente sobre o suporte, retendo os traços de personagens e incidentes, exploram diversas áreas da vida, estendendo-se além de sua degradação e monotonia. Lenir de Miranda fez parte da chamada Geração 80, que reativou tendências neoexpressionistas, dando novo alento à pintura abandonada e desacreditada pela arte conceitual dos anos 70. Entretanto, sua produção e experimentação manifesta-se além da pintura em instalações e livros de artistas, que criou a partir do mítico personagem e suas viagens. Ela foi uma das primeiras a trabalhar com esse gênero aqui no sul, tendo sua obra, inclusive, participado da Documenta 12 Magazine Online, selecionada por curador alemão. Esta exposição e o livro que agora publica cumprem a tarefa de documentar um pouco do trabalho que vem desenvolvendo ao longo de mais de 20 anos, com continuada e consistente produção.

    Qualquer pessoa pode desfrutar de sua obra sem nunca ter lido Homero ou James Joyce. As dúvidas/perguntas que a artista coloca reiteradamente —sob que guia, seguindo que sinais? De quem é este canto? Quem ouvirá esta pintura? — podem servir de guias em suas/nossas viagens. No entanto, é a partir dessa tradição literária que ela elabora suas reflexões e desfruta do que chama “minhas epifanias” e nos permite viver as aventuras/desventuras de um melancólico Ulisses cruzando o mundo contemporâneo.

    A artista, evitando respostas definitivas ou esclarecimentos superficiais, realiza um exercício saudável da dúvida. As diversas interpretações sugeridas por suas imagens advêm dos significados simbólicos instaurados pela memória de um mito que realiza uma suspensão poética de mistérios, deixando espaço à imaginação em uma sociedade eminentemente racional.

     

    Maria Amélia Bulhões
    Professora titular do Programa de Pós-Graduação em Artes do Instituto de Artes, da UFRGS, Porto Alegre.
    Doutora pela Universidade de São Paulo (USP), Pós-Doutorado na Universidade de Paris I – Sorbonne, Paris.
    Pesquisadora do CNPQ sobre Arte Latino-Americana, crítica de arte, com livros e artigos em publicações nacionais e internacionais.
    Porto Alegre, novembro de 2009.

  • Research in Teaching Visual Arts – Archimboldo’s Experience

    Dr. Maristani Polidori Zamperetti
    Universidade Federal de Pelotas

    Lenir de Miranda, the book-to-artist “Autobiography of us all” says the work also evokes the autobiography of the receiver, as proposed by the artist. So, she explains that this involvement occurs “[…] a confession, delivery, the elements of the code. […] All bits mean for both parties, author and recipient. For the meaning of words and images is not in words and images, but the people in their circumstances” (MIRANDA, 1994, p.7).

    Dr. Maristani Polidori Zamperetti
    Universidade Federal de Pelotas
    Brazil Global Journal of HUMAN SOCIAL SCIENCE Arts, Humanities & Psychology
    Volume 13 Issue 3 Version 1.0 Year 2013 Global Journals Inc. (USA)
    http://socialscienceresearch.org/index.php/GJHSS/article/view/653/600

  • Lenir de Miranda Espaços do Corpo

    Mônica Zielinsky, et alii. Espaços do Corpo. Edit. da Universidade Federal do RS. Porto Alegre, RS. l995.
    Doutora pela Universidade de Paris 1 - Sorbonne
    Professora do Instituto de Artes da UFRGS
    Pesquisadora de Artes Plásticas

    Lenir de Miranda, em sua trajetória, evidenciou uma produção intensa, que sempre a arrebata profundamente. Esta produção foi testemunha de sua angústia diante de toda uma problemática da história de seu tempo. Mundos representado e real fundem-se pelo olho perspicaz desta artista, tão identificada e atingida por fatos que, em seu entender, abalam as condições de sobrevivência e convivência humanas no momento presente.

    A temática em Lenir não busca o agradável. Trata da realidade dramática e do seu posicionamento crítico frente a esta realidade. É sem dúvida uma arte de contestação.

    O tratamento espacial em sua obra apresenta um conjunto de aspectos importantes para a análise. Verificam-se as rupturas espaciais, as imagens mecanomorfas, os infinitos diferentes pontos de vista que quebram a unicidade de compreensão do espaço.

    Espaços sobre/vivências apresentam acentuados planos cortados-recortados. Alguns são preenchidos de corpos, outros somente de grafias ou sinais (asteriscos, cruzes, setas, números, palavras, espirais, linhas e rabiscos). Mas sempre há um corpo que emerge deste espaço, “sobrevivendo” a todo interceptar dos planos, janelas e molduras. O seccionamento é sempre de asfixia, de enquadramento do constrito. Mas mesmo assim, por minúsculo que possa surgir o personagem, ele espia. Daí a ambiguidade das relações figura-fundo. Nunca se sabe o que é um ou outro.

    Corpos na produção plástica de Lenir: imagens que tornam presente ou são sintomas de um sentido que os transcende.

    Corpos e espaços no trabalho de Lenir de Miranda integram-se profundamente. Suportam-se coerentemente. A instabilidade é a mesma, assim como as rupturas, ambiguidades e confusão. A trajetória parece ser a de expansão, da linha, da mancha, da cor, das configurações, mas principalmente dos próprios fragmentos.

    A produção plástica de Lenir de Miranda propõe infindáveis questões, tanto no que se refere à produção em si como sobre a função que ocupa no espaço social da arte do Rio Grande do Sul.

    Referência Bibliográfica:

    ZIELINSKY, Mônica, et alii. Espaços do Corpo. Editora da UFRGS. Porto Alegre, RS. l995.

  • …Fastfoods com Poemáticos Conturbados…

    Nadja de Carvalho Lamas. Joinvile, SC. 2008.
    Profª Drª Nadja de Carvalho Lamas
    Membro da ABCA/AICA
    setembro de 2008

    A arte é um campo no qual tudo que aparentemente parece impossível, ali se torna poeticamente viável. Nada está dado a priori, sua lógica é de outra ordem. O seu jeito de fazer se encontra no ato mesmo de fazê-la, não há como buscar fora do seu espaço. O diálogo com a obra se dá em um plano mais profundo do aquele da razão, logo, faz-se necessário estar aberto para com ela conversar.

    No dia a dia os fastfoods – comida rápida – são para serem ingeridos velozmente, na hora do rush. Há sempre muitas, muitas opções, mas a escolha precisa ser rápida, pois o tempo urge, há muito que fazer, ainda. Quem vem atrás tem pressa. O dia é sempre menor e a demanda maior, muitos afazeres… ah, os fastfoodsde Lenir Miranda! – são metáforas poéticas do nosso cotidiano, das questões do tempo que se vive, simbolizadas pelo ato fundamental de sobrevivência, o ato de se alimentar. Ato esse tomado de uma dimensão simbólica que assusta e faz refletir. Afetam-nos!

    Em Et in Arcádia ego – SOS, por exemplo, vimos uma pequena bandeja com objetos e imagens instigadoras e provocantes. Título que faz referência tanto ao universo da História da Arte, como ao da morte. Panofsky (1979, p.379 – 380) diz que a interpretação real desta frase é “A morte existe mesmo na Arcádia”. A Arcádia, parte central da península do Peloponeso, terra de pastores, cujas associações a identificavam com um paraíso de felicidade, um lugar mítico no qual os homens conviviam livremente com os deuses. Essa terra era o domínio de Pã, famosa pela sua musicalidade, mas também por sua ignorância e baixo padrão de vida. Políbio descreve-a como uma “região pobre, desolada, pedregosa e gelada, destituída de todas as amenidades da vida e quase incapaz de produzir o alimento para umas poucas cabras”. Ovídio descreve os seus habitantes como “selvagens primitivos”. Todavia Virgílio acrescentava-lhe encantos que “esta nunca possuíra: vegetação luxuriante, primavera eterna e tempo inexaurível para o amor” (p.382). Mas havia uma dissonância entre o sofrimento humano e o ambiente perfeito, dissonância que se diluía na poesia de Virgílio por meio da “mistura de tristeza vespertina e tranqüilidade” (p.383).

    Mesmo lá, em terra tão distante “a morte existe” – SOS! Mas, ela também está aqui!

    Uma bandeja transparente que se abre. Uma Caixa de Pandora? Pode ser. Ali estão objetos apropriados, uma maçã de isopor machucada – o pomo da Discórdia, o pomo de ouro ou a maçã de Adão e Eva? Símbolo de conhecimento que une ou que desagrega? O garfo espeta-lhe com um de seus dentes… Minúsculos dados brancos sussurram o SOS, enquanto o dado vermelho traz o número quatro, símbolo de plenitude e universalidade, forma plena de densidade. O número cinco aponta para a harmonia e o equilíbrio. Será? Vermelho e branco, como a fibrilação – contração involuntária e sem coordenação. Um relógio, uma bússola e um termômetro – tempo e espaço que se articulam. Soldados em posição de ataque, uma bala que tomba ao chão e o comprimido que tanto salva como mata. Ao abrir a caixa os males se espalharão. Felizmente o santo das causas urgentes é invocado!

    Lenir disse em uma missiva que os fastfoods – são bandejas que oferecem elementos para degustar pensamentos, na hora do rush. […] São pensamentos em ebulição, por vezes dramáticos, irônicos, com algum senso de humor negro, como se diante de tudo, esteja sendo necessária uma urgente catarse.

    Junto aos FastFoods vão os Poemáticos Conturbados, que, segundo Lenir, são poemas sob a pressão dos tempos atuais, ou em que vivemos…. Nos tempos em que vivo, como fazer poéticas que não sejam conturbadas?

    Entre os Poemáticos Conturbados e os Fastfoods resta a esperança, tal como em Pandora, quem sabe! Os dados foram lançados… Et in Arcádia ego…


    Referências:

    PANOFSKY, Erwin. Significado nas artes visuais. 2ªed. São Paulo: Perspectiva, 1979.

  • Post Traumatic Vision of le Déjeuner sur l’Herbe

    Neiva Bohns. Pelotas, RS, 2006.
    Doutora em Artes Visuais
    (Universidade Federal do Rio Grande do Sul - Porto Alegre, RS)
    Professora do Instituto de Artes e Design
    (Universidade Federal de Pelotas, RS)

    …Presença fundamental na mostra é a de Lenir de Miranda, cuja trajetória, marcada por passagens pela arte conceitual, indiscutivelmente vem contribuindo para com a sedimentação do terreno da arte contemporânea no sul do Brasil. Sua metafórica instalação intitulada Post Traumatic vision of le Déjeuner sur l’Herbe (Visão pós- traumática do piquenique no bosque), é constituída por elementos perceptíveis e por elementos simbólicos e invisíveis a olho nu. Vemos o tecido, o carvão e o plástico, assim como podemos ler os textos verbais. Mas a obra é fundamentalmente feita pelo que não pode ser visto, mas pode ser pensado.

    A obra de Lenir de Miranda faz referência à perturbadora pintura Piquenique no bosque (Édouard Manet, 1863), considerada como um marco inaugural da arte moderna, em que o artista apresentava uma mulher despudoradamente nua numa descontraída conversa com dois senhores bem-vestidos, em meio a um agradável recanto da natureza. Mas na instalação da artista gaúcha desapareceram os provocativos sinais de ironia da abordagem original do tema, que visava afrontar o senso comum (leia-se pensamento burguês). O que fica, como comentário ácido e doloroso das incongruências da vida contemporânea, é a cada vez mais inaceitável vitória da repressão sobre a liberdade…

  • Ninguém sobrevive incólume

    Neiva Maria Fonseca Bohns
    Historiadora e crítica de artes visuais
    Professora de Arte Contemporânea do IAD/UFPel
    Texto sobre exposição de Lenir de Miranda no MARGS
    Porto Alegre, RS, Fevereiro de 2010

    No próximo domingo, dia 28 de fevereiro, encerra-se uma das melhores exposições de arte que a movimentada capital gaúcha pôde ver nos últimos tempos. Refiro-me à exposição da artista pelotense Lenir de Miranda, no Museu de Arte do Rio Grande do Sul, o MARGS. Meu nome é ninguém traz de volta a densidade das pinturas e dos desenhos dos anos oitenta, sem qualquer sinal de anacronismo. Há relicários. Há paisagens. Mas também há outros objetos tocados pela pintura.

    Feitas de uma materialidade quase sensual, essas obras recentes de Lenir de Miranda existem para o prazer dos sentidos. São verdadeiros convites ao deleite sensorial. Aí está uma mostra de arte que não abre mão das ideias mais perturbadoras, mas que, fundamentalmente, foi concebida para ser vista. E é preciso dispor de tempo para olhar para as pinturas e para todas as outras coisas que coexistem como fatos artísticos. Se alguém, em algum momento, nas últimas décadas, acreditou na morte da pintura, estava enganado. Ou foi uma certeza passageira. Nada melhor do que observar algo que se entrega ao olhar sem desaparecer instantaneamente, como uma imagem digital qualquer. A vida no século XXI já é suficientemente ruidosa para perdemos os espaços de arte como lugares de silêncio e reflexão.

    Quando eu conheci Lenir de Miranda ela já era uma artista profissional. Eu era uma adolescente. Lembro-me do primeiro contato que tive com seu trabalho. Foi no finalzinho da década de setenta do século XX, numa exposição apresentada no hall da Prefeitura Municipal de Pelotas. Eram desenhos de forte teor expressionista, em que figuras humanas subsistiam num emaranhado de linhas, feitas com caneta marrom de ponta fina. Também havia inscrições verbais. Voltei lá muitas vezes para ler “somos todos sobreviventes, meu caro”. Era exatamente como eu me sentia. Uma sobrevivente. E o contato com o pensamento poético de Lenir de Miranda, naquele momento, ajudou-me a entender que algumas pessoas precisam da arte para viver como precisam de oxigênio para respirar. Arte é muito mais do que um mero passatempo de final de semana.

    Depois disso, nossas vidas se cruzaram e se descruzaram várias vezes. Como aluna de pintura, frequentei alegremente o ateliê que ficava no segundo andar da saudosa Escola de Belas Artes, e muitas vezes ouvi-a dizendo, no início de uma explicação: “minha rica flor de maracujá, presta atenção…”. Até hoje sinto saudade do cheiro da tinta e do solvente. E da maletinha com os tubos de tinta (o tubo branco era maior). E das telas que iam se transformando a cada semana. E lembro de Lenir, saltitante, falando sobre pintura moderna. Ela entrava e saía da sala, nervosamente, várias vezes. Não raro começava um assunto e esquecia de finalizá-lo. Depois voltava, explicava mais um pouco. Mas sempre ficava a sensação de que ela tinha mais alguma coisa a dizer. Era preciso conhecer Paul Cézanne. Era preciso aprender a olhar. Será que tínhamos visto mesmo aquelas sombras cheias de cor, que ficavam esmaecidas na reprodução? Decididamente, era preciso absorver a arte moderna, porque, de outra maneira, a arte contemporânea não poderia bater às nossas portas.

    Algum tempo depois, quando eu já borboleteava por outras áreas como teatro e música, lembro-me de assistir a uma performance referenciada na obra do artista alemão Joseph Beuys. De novo, era Lenir de Miranda que, andorinha solitária, tentava fazer verão no burocrático ambiente universitário. Ninguém, antes dela, tinha falado em Joseph Beuys. Ninguém, antes dela, tinha sequer falado em Marcel Duchamp. Alguns de nós, alunos curiosos, estávamos sedentos por conhecer a arte do nosso próprio tempo. Mas nunca é fácil colocar os pés no presente.

    Joseph Beuys. Esse nome hospedou-se de tal maneira da minha cabeça que nunca mais saiu. Passados mais de vinte anos, ainda hoje, nas aulas que ministro sobre arte contemporânea no IAD/ UFPel, Joseph Beuys é um ilustre convidado. Ninguém entende muito bem porque ele fez uma performance com o rosto coberto com mel e ouro, tentando explicar pintura a uma lebre morta. Ninguém entende a razão pela qual ele se encerrou por vários dias numa jaula com um coiote selvagem, em Nova York. Ninguém entende Joseph Beuys até que se disponha a entender. E quando a faísca do entendimento se acende, algo de transformador ocorre na relação com a obra do artista. A mesma dificuldade acontece com o trabalho de vários outros artistas contemporâneos que se mantêm ativos, apesar das adversidades.

    Artistas brasileiros que não vivem nos principais centros econômicos e culturais do país, como Lenir de Miranda, sofrem duramente as conseqüências das opções artísticas e estéticas que fizeram. É muito difícil fazer arte, com auto-crítica e inteligência, e sobreviver ao seu próprio princípio ativo. Para começo de conversa, falta público preparado para a fruição da obra de arte contemporânea. Claro, isso é um problema educacional crônico. Mas também falta incentivo por parte da parcela da dita sociedade ilustrada que gosta de dizer que se interessa por arte e cultura. Para onde vão as obras de um artista, se ninguém, da iniciativa pública ou privada, se dispuser a adquiri-las?

    Talento indiscutível e conhecimento profundo do próprio métier não bastam para a consagração de um artista contemporâneo. No competitivo mundo artístico de hoje, há que ter uma personalidade agressiva, chamar a atenção das pessoas mais influentes no meio (e elas existem), e expor-se ainda mais do que as próprias obras. Se o artista for introspectivo, excessivamente sensível e não se dispuser a fabricar sua própria fama, pode se tornar um personagem invisível, que vive no fundo do seu ateliê, alimentando sofrimentos. A única solução possível de sobrevivência é fazer com que a arte produzida seja mais verdadeira do que a própria vida.

    Há sim, muita vida que continua existindo para além da materialidade das obras de Lenir de Miranda. E quem quiser compartilhar do interesse da artista sobre literatura, verá que os assuntos nunca são periféricos ou superficiais. Fiel a James Joyce há muito tempo, suas conversas imaginárias com o escritor e seus personagens se transmutam em gestos vigorosos e delicadas construções. Nos últimos tempos, fez um mergulho ainda mais profundo nas origens do pensamento ocidental: foi buscar em Homero as passagens míticas que se tornaram novas metáforas constitutivas do seu processo criativo.

    Desde o título, Meu nome é ninguém, obviamente, joga com o dúbio significado dos termos. É a afirmação de uma negação. Mas também é uma armadilha, uma provocação, tomada de empréstimo de Ulisses ao enfrentar o terrível monstro devorador de homens. Contra a violência e a força brutas, ninguém sobrevive incólume. Só a astúcia nos salva.

    Lenir de Miranda, amadurecida pela longa experiência como artista e professora, pode, como poucos, fazer uma síntese de seu pensamento poético, ao mesmo tempo em que aponta para uma mudança de rumos na sua abordagem estética. Aquelas pinturas querem respirar; estão pedindo mais parede. Aquela conversa iniciada com o poeta Mallarmé ainda tem muito para dar. Resta aos observadores atentos aguardar pacientemente para saber o que está por vir.

  • As dores e as cores de Ulisses

    Paula Ramos.
    Jornal Zero Hora, Porto Alegre, 7 janeiro 2010.
    Jornalista, Crítica de Arte e Professora junto ao Instituto de Artes da UFRGS
    Doutora em Artes Visuais, ênfase em História, Teoria e Crítica de Arte (UFRGS, 2007)

    Entre as obras literárias mais importantes para a constituição do imaginário ocidental estão as epopéias A Ilíada e A Odisséia, provavelmente redigidas no século VIII a.C. e atribuídas ao poeta grego Homero. Enquanto a primeira pauta-se na Guerra de Tróia, a segunda narra o regresso de um de seus heróis: Ulisses. Terminado o conflito, tudo o que Ulisses almeja é retornar à sua pátria, à ilha de Ithaca, onde a fiel esposa Penélope o aguarda. Entretanto, por ter ofendido o deus Posêidon, é condenado a vagar pelos mares durante dez longos anos, enfrentando toda sorte de perigos: bruxas, sereias e monstros inimagináveis. Nesse percurso, depara-se com o terrível ciclope Polifemo, a quem só consegue derrotar porque, em determinada passagem, diz-lhe que seu nome é Outis, ou seja, Ninguém em grego. A artimanha que anula temporariamente identidade e passado parece equivaler a uma negação, mas está muito mais relacionada à sobrevivência não somente do guerreiro, mas do próprio homem contemporâneo, diante de um mundo em convulsão. É justamente essa passagem, Meu nome é Ninguém, que intitula a magnífica exposição de pinturas que Lenir de Miranda (Pedro Osório, RS, 1945) apresenta até 31 de janeiro no Margs, em Porto Alegre.

    Há pelo menos 25 anos Lenir vem se dedicando ao legendário personagem. Nesse ínterim, é lícito perguntar: afinal, por que Ulisses? E a resposta paradoxalmente mais simples e também mais complexa talvez seja: porque ele nunca terminou de dizer o que tinha para dizer. Ao cruzar o mundo atual, o melancólico herói continua suportando experiências traumáticas: a fadiga, a dúvida constante, a solidão. Tudo o que deseja é a segurança de sua casa. Seu percurso não é de ida, mas de retorno: o que ele procura é o seu passado. E nenhuma volta é sem dor.

    Lenir nos lembra disso a todo instante. A palavra Nostos, tão freqüente em sua poética, remete-nos à nostalgia, à dor de regressar. Dor que se manifesta não somente por meio da palavra, mas da visceral pintura, de viés marcadamente neo-expressionista. Dor que habita as grandes superfícies recortadas e de justaposição caótica, as imensas áreas cromáticas, maceradas pelo carvão, bem como os arames, ferros retorcidos e plásticos queimados, fragmentos de uma vivência conturbada, de conflitos e dilaceramento, mas também de encontro.

    Em sua admirável liberdade criadora, que lhe permite adotar os mais distintos materiais e procedimentos, Lenir de Miranda nos oferece uma pintura pulsante, de rara envergadura. E embora empreenda profundo mergulho no universo simbólico de Ulisses, reafirmando a atualidade de suas inquietações, de forma alguma é necessário que o espectador conheça as desventuras do personagem. A arrebatadora obra de Lenir nos reporta a essas mesmas convulsas e transformadoras vivências, incitando-nos a pensar em nossos percursos, pesares, escolhas e memórias.

  • Passaporte de Ulisses

    Paulo Bruscky. Recife - PE.

    Como é bom viajar com o seu Passaporte de Ulisses.
    Se todas as viagens fossem assim, o mundo seria diferente!

  • Os Livros de Lenir de Miranda

    Paulo Gomes. Porto Alegre, 1994
    Crítico de Arte,
    doutorando em Poéticas Visuais, Instituto de Artes - UFRGS, Porto Alegre - RS.
    Professor do Instituto de Artes - UFRGS

    O livro de artista não é em nada semelhante ao livro de arte ou de qualquer outro livro. O livro de artista é a mudança da forma e dos materiais do livro comum para que ele se adapte à visão pessoal de seu criador. No livro de artista há a colaboração efetiva do continente com o conteúdo.

    Nos livros de Lenir de Miranda a conjunção da estrutura com o conteúdo está a serviço de uma trajetória das mais inspiradas da arte gaúcha. Lenir de Miranda sempre foi livresca. Sua obra é em grande parte estruturada a partir de textos literários, como o Ulisses, de James Joyce.

    Há na artista a mesma centelha do irrequieto personagem de Joyce: ambos passam por inúmeras e elaboradas aventuras, substituídos pela experiência plástica de muitos anos, do longo e laborioso caminho pelo desenho e pela pintura e sua requintada fatura.

    Natural que houvesse uma síntese no trabalho da artista e que esta síntese viesse em forma de livros: estão aqui expressos em forma de objetos manipuláveis as experiências na pintura e no desenho e sua recorrente incursão pela tridimensionalidade que a artista vinha fazendo através da inclusão de objetos nas suas pinturas. Os livros de Lenir de Miranda realizam a ambição da artista de produzir objetos sensórios.

    Somos exigidos em quase todos os sentidos ao mexermos com estes livros: a visão é o primeiro e essencial sentido exigido, pois estamos lidando com objetos plenos de sugestões visuais. Depois o tato: há uma riqueza assombrosa de sensações táteis nestes livros – são tecidos, papéis, objetos como porcas, parafusos, tomadas, ferragens diversas, além de superfícies impregnadas de cera e tinta. A audição é solicitada ao manipularmos as capas feitas de alumínio, além das folhas ásperas de tinta e o bater de tantos metais. O olfato também participa desta festa sensória, pois é forte e onipresente o odor de cera, óleo, parafina e tinta. Sem deixar de falar aqui das inúmeras dobras e costuras e desdobramentos que estes livros comportam. São quase inesgotáveis, verdadeiros objetos de prazer.

    O livro-de-artista é uma obra visual, totêmica ou iconográfica, conforme Ricardo Minsky [Book Arts in USA. New York: Center for Book Arts, 1990). Em Lenir de Miranda o livro de artista é uma obra totêmica porque seu caráter de objeto é explicitado ao máximo e traz nos materiais com que foram compostos toda a diversidade de experiência artística contemporânea. E por fim é iconográfico, pois temos aqui uma síntese do imaginário inesgotável da artista.

    No Livro do Exílio e da Nostalgia, que tem como ponto de partida a palavra, Lenir de Miranda opera uma síntese a partir do poema de Gonçalves Dias, por si só já bastante emblemático. Seu desdobramento visual é feito a partir de um rico repertório de materiais, como tela, tecido, metal, tinta, dobradiças, parafusos e folhas de árvore.

    Após o elaborado passeio proposto pela artista somos alertados para a presença de um discreto olho-mágico que esconde em seu fundo um ramo de folhas secas. Neste olhar direcionado e restrito, Lenir de Miranda nos aponta para a função do artista, de que o entender é a constatação de uma intenção e que a arte começa depois disso.

    Mais do que a síntese de um pensamento ecológico, esse olho mágico nos mostra a síntese do olhar artístico, um olhar reduzido aos limites da produção enquadrada nos conceitos e fórmulas da produção de imagens, mas capaz, talvez por causa desta redução, de nos fazer perceber a metafísica dos indivíduos e dos grupos e de sua interação com o meio.

    Lenir de Miranda, através da linguagem e do signo, constrói a representação e representa a construção.

  • O Contexto dos Livros de Lenir de Miranda

    Paulo Silveira. Porto Alegre, 2000
    Mestre em Poéticas Visuais (UFRGS),
    Pesquisador em Artes Visuais.
    Autor de “A Página Violada: da ternura à injúria, na construção do livro de artista”.

    O texto que tem acompanhado as artes visuais no século XX, por sua presença ou pelo enaltecimento de sua ausência, é uma entidade ambígua, uma ferramenta pouco ergonômica. Ele faz a apologia do artista, ele o acossa, julga o produto artístico, busca uma distância crítica… Também pode fazer parte da obra… ou não. Caso se proponha uma situação primeira, onde a escrita legitima a arte (ou faz seu comentário escrito), imediatamente se imporia uma segunda situação, em que o artista visual se apropriaria do texto (descritivo e narrativo). O inter-relacionamento dessas situações deverá gerar uma terceira, onde será a obra que perverterá a escrita. E cada vez mais o artista avançará até o epílogo adivinhado: a quarta situação, a escrita expulsa de seu próprio suporte. E, enfim, o que se tem é o volume. Em que região entre esses quatro vértices estamos nós, que temos as páginas de Lenir de Miranda nas mãos? E elas mesmas, as páginas de Lenir, onde estão?

    Existem ocasiões em que é prudente reduzir o espaço gasto com palavras. Vou omitir as perguntas e deixar que as dúvidas enfeitem minhas convicções. Porque hoje existem tessituras mais ricas entre os mundos da estética literária e da plástica, queiram ou não os escrevinhadores. As inteligências que constroem a teorização do objeto artístico do agora são mais amadurecidas. São maiores e mais conscientes que suas antecessoras. O envolvimento é mais comprometido. Por outro lado, esse espaço disponível à reflexão textual às vezes deixa a mostra certa escrita gratuita, apressada pela ansiedade. Talvez porque a palavra que julgava e interpretava a arte agora é sua refeição diária, comum, degustada em círculos maiores. [….]

    No Brasil, o livro de artista estrito (um produto diferente do livro-objeto, ainda que ambos pertençam à grande categoria do livro de artista) teve e ainda tem pouca divulgação. E o livro-objeto, por sua vez, sofre da pequena atenção recebida dos próprios artistas. É nesse contexto semi-árido que os trabalhos de Lenir de Miranda se multiplicam, indiferentes ao desamparo crítico que isola os fazedores de livros. A maior parte da produção da artista é de livros-objetos em exemplares únicos, produzidos a partir de meados dos anos 90, ainda no refluxo da arte matérica.

    Apresentam-se como obras quase inteiramente plásticas. Têm normalmente a materialidade e a sensualidade como características dominantes, com a presença eloqüente de uma ampla gama de pigmentos e substâncias (com destaque para a cera de abelha e a laca), mesclando, manchando ou revestindo materiais como o pano, a lixa ou a madeira. Mas neles o texto não é integralmente ausente. Aqui e ali aparecem frases esparsas, às vezes parágrafos inteiros, associados direta ou indiretamente às construções literárias de James Joyce (Ulisses). Também podem ser encontradas outras anotações ou anexações físicas, como tíquetes, rótulos ou outros impressos, além de objetos diversos, como dados de jogar, arames, interruptores elétricos, enfim tudo que se puder imaginar. Os livros, aqui, são sobretudo coisas. Seus títulos são por vezes mais ou menos objetivos, citando suas características (Livro da pintura ou Livro com funil de Buchner e decantação); outras vezes são subjetivos, embora proponham a sua função (Livro para ligar ou Livro para Beuys ver); ou são francamente ambíguos (Livro com todas as páginas oceânicas ou Livro induzido). Todos menos um são peças únicas.

    Autobiografia de todos nós foi produzido para acompanhar a exposição homônima de livros-objetos únicos em 1994, dentre eles alguns dos já citados. Poderia ser originalmente um catálogo. Mas por permanecer vivo independente da exposição ele se recusa como tal. E essa recusa é sua mais interessante característica. Ele se impõe como livro de artista stricto sensu, múltiplo e satisfeito com sua condição simultânea de obra gráfica e plástica. A totalidade (a proposição) de sua tiragem é, também, coisa. Essa é uma dimensão exclusiva do mundo industrial, aqui subvertida ao propósito artístico. Ou seja, ter uma tiragem é um propósito estético. A relativização do industrial fica estabelecida pela inclusão em cada exemplar de fragmentos de tecido pigmentado e/ou tratado com cera. Essa indefinição entre o único e o múltiplo retornaria na primeira versão de Fim de Expediente, 1998, onde o texto permaneceria essencialmente imutável em doze exemplares, individualizados por colagens, montagens e pátinas matéricas. Paradoxalmente ou não (para quem visa ao livro semi-industrial) a mão plástica continuava sendo dominadora, muito mais eloqüente que a intenção multiplicadora. Isso se confirmaria pelos exemplares adicionais realizados depois, persistentemente híbridos.

    Mal acomodada na sua tensa mas zombeteira insatisfação fim-de-século, Lenir tenta agora uma nova e mais definitiva inserção no mundo plural, deixando o singular no âmbito do ateliê. Talvez intromissão, melhor dizendo, já que prescinde de convite. O trabalho resultante agora é gráfico e industrial, não mais obra única. No seu projeto mais recente ela junta num só volume dois exercícios originalmente avulsos: uma nova versão de Fim de expediente com o inédito A Sinalização. Ambos são produtos da interação entre imagem, texto em prosa e palavra impressa. No primeiro caso o texto é abundante, enquanto no segundo ele é mais escasso, por vezes apenas indicial. Anexado ao conjunto, está um livreto com artigos suplementares, entre eles este que o leitor tem em mãos (ao meu ver intromissões dispensáveis, ainda que possam ter alguma utilidade num ou noutro ponto; de minha parte, eu peço desculpas). A artista quer um público maior, muito maior… e uma arte mais acessível. Com o auxílio do computador, que alternadamente a seduz e irrita, ela digitaliza o que era na sua origem objetivamente real e manipulável. Levada à condição de ser agora apenas uma etapa de um processo mais complexo, a superfície pictórica matriz, com panos, pigmentos e colagens, se submete ao achatamento inerente à página gráfica, unidade plana multiplicada pelos rolos de impressão. Como afirmação da bidimensionalidade, a imagem resultante correria o risco de ser apenas ilustração, o que infere uma relação hierárquica da página, principalmente quando acompanhada de um bloco de texto. Lenir não permite que isso aconteça, ao menos até a fase de impressão doméstica artesanal com impressora a jato de tinta (sabemos que uma imagem pode sofrer sérias alterações na passagem de um processo de provas para sua impressão final em offset). As cores obtidas nos seus primeiros protótipos são vívidas, recriando as texturas originais. Não acontece aqui uma emulação pela emulação, porque o recurso à mídia é um propósito. A consciência da multiplicação é patente, mesmo que seja buscada a fidelidade de reprodução. Neste aspecto, quase que se pode sentir a textura graxa da parafina utilizada na composição original. O plano é, por isso, mais que afirmado, sublinhado. A página é página mesmo, despretensiosa e amiga de quem a manuseia, mas impõe-nos o poder de citação das tintas que as tocaram. A letra impressa é macerada nas manchas de cor (originalmente laca, em muitos casos). Quase morre afogada. As colunas de texto ou são imagens muito pobres para sobrepujarem o estilo tenso do traço de Lenir, ou são feridas até quase a morte por traços, nódoas e as próprias marcas de sua colagem.

    Reitero o afirmado acima. A qualidade tátil da imagem impressa é resultado do profundo desejo de que o público compreenda a origem plástica do projeto. A imagem se torna presente em três estados. Ela existe da origem plástica, matérica, com textura e cheiro, um evento da percepção imediata. Ou seja, a imagem e sua coisa. Ela é, então, digitalizada, passando por uma existência virtual, despregada do objeto. Importante acrescentar que Lenir usa a própria matriz no digitalizador, sem a intermediação da câmera fotográfica: o vidro do scanner toca por nós a epiderme original. A imagem só existirá se for seguida uma série de procedimentos de uso do equipamento. Será reconstruída no monitor ou em sua impressora, aditiva ou subtrativamente. E estará apta a ser traduzida para o fotolito de artes gráficas, podendo antes disso sofrer alguns retoques e pequenas alterações. Finalmente impressa, ela ressurgirá exponencialmente em seu terceiro estado, como estampa, estando o livro aberto aos nossos olhos ou fechado em algum canto. Mas multiplicado em cem ou em mil, mesmo que seja praticamente impossível reproduzir toda a tessitura do apelo tátil e visual característico na obra de Lenir.

    Mas a artista quer chegar aos nossos olhos (e às nossas mãos). Restaria como possibilidade uma tradução? Melhor seria chamar de versão. A artista quer e parte em nossa direção a partir de suas próprias ferramentas. A obra é outra, com identidade própria, mas sem perder seu espírito. Alma e corpo não podem estar separados, não importa suas falências, porque juntos precisam sobrepujar suas próprias razões, a consciência de sua possível comunhão quase eterna.

    O livro de Lenir é a reconstrução de seus muitos espelhos. Porém é mais estratificado, com muitas camadas de espectros, como se fossem tomografias de um espaço comum ao seu universo pessoal e ao nosso mundo cultural. Ele é o duplo que com as apreensões da artista dividiu a gênese e que conosco agora troca olhares, emitindo seus afetos em nossa direção. É a imagem que pelo processo pode ser distendida e reelaborada, pode ser prolixa, reiterativa. Insiste (suplica) pela nossa atenção. Ela quer ser um agora, sim, físico e antropológico, mas também quer metaforizar muitos extratos do tempo. Quer (precisa) a nossa companhia. De todos nós. E que sejamos muitos. Mas certamente seu livro não traz a mera confidência, e sim a cooptação íntima. Lenir nos quer ao seu lado, dentro de seus mares perspectivados, por vezes inutilmente contidos por linhas escuras, em vão decididas em delimitar compartimentos vitais […]

    Cindida entre a memória viva do Canal de São Gonçalo e a memória emprestada dos canais de Dublin. Quantos mares entre eles! Para pictografá-los, Lenir escolheu uma mídia que por si só já é mal entendida, mas que gosta e se orgulha dessa situação torta. O lugar artístico do livro de artista é o lugar das margens de um universo de duplos ora em cisão, ora em comunhão. Dois como par ou como a soma dos ímpares. Onde se pode perguntar se a função é mesmo pervertida nos objetos híbridos e se a dúvida não seria a melhor e a mais desejável das respostas.
    (fragmento do livro-texto de A Sinalização – edição de Lenir de Miranda)

    […] Lenir de Miranda, primeiramente desenhista e pintora, ela parece ter sido uma das mais prolíferas produtoras de livros de artista do sul do país nos anos 90. […]
    A cumplicidade inevitável entre o homem e o livro seria uma armadilha? E ao que é da psique deve ser permitido o toque? […] talvez vislumbremos aí a alma metafísica dos livros de Lenir de Miranda.
    (fragmento do livro A Página Violada)

    Porto Alegre, 2000

  • Passeport di Ulysse

    Pierre Restany. Paris, 2002.

    “J´ai complété selon vos indications le Passeport di Ulysse dont je suis très honoré de posséder le nº 3. Ulysse de James Joyce a été depuis ma jeunesse universitaire la bible de mon nomadisme culturel.

    Um tel Passeport illustre l´identité profonde de ma nature poétique et témoigne dema liberte d´accès à la globalité de la communication.

    Je retiens ce document à la fois comme um fetiche personnel et comme lê “Sésame, ouvre toi ! “ de toutes les cavernes d´Ali Baba passées, présentes ou à venir. Je me fais ainsi um plaisir de souligner lê synchronisme spirituel de nos deux visions et de la fatale analogie de nos pensées frontalières.

    Bien sincèrement à vous.”

  • Ulysses Passport

    ROBERT JOYCE
    Grand-nephew of James Joyce
    Chief Executive of the James Joyce Centre - Dublin, august 2002

    “I think this is a very interesting concept and a visually exciting method of exploring Joyce`s works. I admire the research, artistic affort and creative energy that has gone into the production of the Ulysses Passport and am delighted to sign this Passport on behalf of the James Joyce Centre, Dublin.”

  • Passaporte de Ulisses

    Ruggero Maggi
    Artista multimídia e Diretor da Galeria de Arte Contemporânea Milan Art Center
    Milão, Itália

    “…Cerca de dez anos atrás, o diretor do Instituto de Cultura Italiana, em Dublin, levou-me na residência onde James Joyce viveu.

    (…)Caminhando ao longo daquela costa de mar, passo a passo, num mergulho, veio-me a imagem, quase como frente a um espelho, de um homem caminhando: o grande escritor irlandês.

    Esta imagem tem me acompanhado durante minha vida e agora este grande projeto ‘O Passaporte de Ulisses”, da conhecida artista brasileira Lenir de Miranda, tem tido o poder de evocar em mim todos estes inesquecíveis pensamentos.

    “O Passaporte de Ulisses”, como uma espécie de passagem secreta para nosso mundo interior poético, traz fantásticas sensações voando dentro de nossas mentes.”

  • Apenas o acaso

    Walter de Queiroz Guerreiro, M.A.
    Membro da Associação Brasileira e Internacional de Críticos de Arte (ABCA/AICA)
    Joinville – SC 2008

    No princípio era o caos. É dessa maneira que Hesíodo, poeta grego do século VIII a.C, inicia a Teogonia, contando a seu irmão Parses uma concepção de mundo, originária de mitos dos povos indo-germânicos.

    Como especulação cosmológica, para o início de tudo, existiram terra e céu separados pelo Caos, e Eros, a força criadora que de maneira racional explica a existência. Mas, o que seria este Chaos?

    Hesíodo o descreve como um vazio primordial, ilimitado, desordenado, em que todos os elementos que irão formar o universo se misturam regidos pelo acaso. Essa noção de acaso será exaustivamente estudada por filósofos e modernamente por psicanalistas, mas simplificando podemos dizer que aquele acaso aristotélico, que designava o encontro fortuito de duas séries causais, nada mais é que a articulação temporal de uma série de significantes, que entendemos como realidade do mundo, e que pela rememoração confere significado ao mundo.

    Lenir de Miranda, em exposição atual na Cidadela Cultural Antarctica (anexo ao Museu de Arte de Joinville), explora em instigante instalação na qual o estranhamento decorre da velocidade vertiginosa e múltipla de signos, aflorando na repetição “possível” de instauração da obra. Para o observador desavisado a instalação instaura-se em três momentos isolados, entretanto dialogando entre si: são os fastfoods, oitenta e seis bandejas “vendidas” como de consumo rápido (e cujo conteúdo já é um contra-senso, por se tratarem de slowfoods do pensamento), o vídeo “Visão pós-traumática do Dejeneur sur l’herbe” de Manet e uma tela – instalação “Por Onde Andares”.

    Já de início os fastfoods, que pelo volume de informações apontam para o paradoxo de um serviço destinado ao consumo de massas, e que entretanto o desorientam pelo excesso, trazem uma dupla sinalização do que nos espera. São embalagens fechadas que nos deixam entrever o conteúdo, e aí constatamos a antinomia entre os componentes, entre as caixas e os rótulos, no caso chamados de “Poemáticos Conturbados”, no retorno à causa primeira do mito. Hesíodo, na Teogonia, é o primeiro a nos descrever a criação de Pandora, a detentora de todos os dons. Modelada como ardil, para punir os homens pelo furto do fogo efetuado por Prometeu, Pandora, o “mal tão belo” como nos diz Hesíodo, destampa uma jarra espalhando aos males, e noutra versão os bens, restando sempre um presente dos deuses, a esperança.

    Cada caixa contém assim o bem e o mal, ficando como exemplo a caixa que é o convite à exposição, “Et in Arcadia Ego-SoS”. O título, como tantos outros na instalação de Lenir é uma metáfora literária do conteúdo, explora a ambigüidade de uma obra de Nicolas Poussin (1630), entendida habitualmente como uma paisagem nostálgica e idílica, perdida na Grécia Antiga, por sua vez uma releitura de Guercino (1618) em que a mensagem visual é clara, e interpretada por Erwin Panofsky: “até mesmo na Arcádia eu (a morte) estou presente”.

    Vejamos o conteúdo: atraindo a atenção pelo tamanho e cor uma maçã mordiscada, fruto da árvore do conhecimento, do bem e do mal, a globalização de todos os desejos e o símbolo de uma possibilidade, o da escolha, logo ao lado vemos uma pequena esfera, que na filosofia platônica indica o mundo, o mais semelhante a si mesmo na totalidade e ambivalência. Acima, temos a imagem de um santinho, figura masculina com cota de malha e manto romano, empunhando crucifixo com a palavra “hodje”, identificado na hagiografia cristã como Santo Expedito, centurião da XII Legião Romana, a “Fulminata”. Como um dos patronos dos militares e das causas difíceis, relaciona-se diretamente com as miniaturas de soldados presentes, o míssil, relógio e bússola, aqui aliás, onde tempo e espaço respondem pela transformação que irá ocorrer.

    Um termômetro aponta para a possibilidade do fogo interior, e das limitações da existência individual, associado à guerra como expressão da cólera. Ainda significando calor, porém com outro sentido, na outra extremidade uma ampola contém líquido vermelho sinalizando o sangue, veículo da vida, e também da transubstanciação, um comprimido alude ao remédio para todos os males, capaz como a benzedrina de trazer o alívio ou a morte. Dois pedaços de carvão, um intacto, outro metalizado indicam a Grande Arte hermética da alquimia, na passagem simbólica do nigredo pela calcinação dos desejos, transforma-se pelo rubedo na coexistência pacífica dos contrários, e ao metal despojado de todas as impurezas.

    O dado lançado com o número quatro exposto, simboliza a totalidade do criado e revelado terrestre, o fundamento arquetípico da psique humana por Jung, e o último grau de aperfeiçoamento da anima. Os pequenos dados ao lado, criando a mensagem internacional S.O.S. lançam um pedido de socorro diante dos conflitos.

    Ironicamente Lenir serve a bandeja com um garfo, instrumento sofisticado criado pela cultura ocidental na educação à mesa, e um sachê de mostarda, condimento bastante forte para temperar o prato. Como elemento complementar cada bandeja, inclusive esta, é acompanhado de um “Poemático Conturbado”, na realidade pensamentos originados dos Haikai no zen budismo. As frases fragmentárias adquirem aura surreal distanciando-se do conteúdo das bandejas e, como na poética dos Haikai, sua finalidade é criar vertigem, induzir a uma série de intuições de significado, que pela repetição conduziriam a uma ampliação sensorial, indo além do pensamento organizado.

    Presa à etiqueta deste poemático há uma pluma, que comparece também em algumas outras caixas, fazendo citação ao poema de Mallarmé (1897) “Um lance de dados nunca descartará o acaso”, na estrofe referente ao naufrágio: cai a pluma ritmicamente suspensa do desastre para se afogar na espuma original… A pluma, pela leveza e capacidade ascensional, sempre esteve relacionada aos rituais de adivinhação e ao jogo do acaso.

    A escolha desta poesia, do maior simbolista francês, como arcabouço da instalação vai de encontro à intenção original do poeta, ao criar uma forma tipográfica inédita, em que o espaçamento do texto assume importância vital pelo silêncio criado, de modo a que a imaginação surja e se desvaneça ao ritmo do texto; enfim as palavras surgem como imagens, e em Lenir as imagens remetem às palavras, solicitando ao observador a leitura mental do texto oculto.

    A segunda parte da instalação conjuga em vídeo uma releitura do “Dejeneur sur l’herbe” de Manet, obra revolucionária no contexto impressionista, com o poema “The Waste Land” de T.S.Eliot. Poema extremamente complexo, pelo simbolismo e tema da terra devastada, as referências ali são inúmeras: Baudelaire, Dante, Shakespeare, a Bíblia, Wagner, Santo Agostinho, Verlaine, e até mesmo a arquitetura inglesa de Sir Cristopher Wren. Para nós, basta citar a interlocução de que Eliot faz no término de V. What the thunder said ( O que o trovão disse): Datta. Dayadhvam. Damyata. (Doar. Compadecer. Guiar) e Shantih. Shantih. Shantih. (a paz que dissipa a compreensão) ambas frases que encerram os Upanishad, texto filosófico do hinduismo. Cabe também, na mestiçagem da instalação, o trecho final do Sermão do Fogo (III), diretamente utilizado por Eliot a partir do texto mais importante budista:

    Queimando queimando queimando
    Ó Senhor tu me colheste queimando

    Ora, Lenir elabora a partir de uma cena bucólica de Manet, que já era releitura de Giorgione, uma visão traumática contemporânea. O som acompanhando as imagens, inicia com a Sinfonia Pastoral (nº 6) de Beethoven. Pensando na estrutura de seus movimentos, que partem do “despertar de alegres impressões ao se chegar ao campo” passando pela “tempestade” no quarto movimento, é fácil entender a transformação. Lembremos que existe algo de estranho no quadro, uma sensação de falta de diálogo entre os personagens, sendo que a figura central, a mulher desnuda, tem expressão absorta em seus próprios pensamentos e distante da realidade. Na transformação contínua proposta por Lenir, os figurantes se atualizam, a mulher sustém uma bandeja, as cores por tratamento digital se saturam, o contraste fica violento submergindo a imagem em violetas e vermelhos, até desaparecer no negror de uma área interditada pela fita listrada amarela-preta. A cena se encerra com restos de um encontro entre amigos e as citações a Eliot, uma inicial: Vou revelar-te o que é o medo num punhado de pó, outra final: Estarei sentado aqui, servindo chá aos amigos, que nos recorda Proust pelo tempo recuperado e perdido.

    O terceiro momento da instalação consiste numa tela em acrílico com desenhos em carvão, uma imagem deteriorada que opõe a horizontalidade do mundo expressa pela vegetação queimada à recordação esboçada de duas figuras verticais, situando o humano como vaga lembrança da irracionalidade do mundo. Em um dos esboços o registro de um homem e o grafite de um coração como afirmação de existência, dali pendendo um cordel. Este, como frágil símbolo ascensional, também é a indicação de um fio espiritual que liga todas as criaturas. No chão, uma série de calçados amarrados pela fita de impedimento dirigem-se a tela, intitulada “Por onde andares”, apontando no anonimato das relações humanas à apatia da incomunicabilidade.

    Instalação absolutamente contemporânea pelas tensões introduzidas através dos signos constitutivos, íntegra nas questões formais envolvidas, nos deparamos aqui com o que Icleia Cattani define como mestiçagem. Fala-se tanto de hibridismo como expressão atual de arte, que se esquece ser o hibridismo produto final apresentando fusão de linguagens diversas, que não mantém as tensões dos componentes diferentes. No caso em pauta, na mestiçagem, sobrevivem as poiéticas próprias, aquelas motivações e processos criativos de cada linguagem, ainda identificáveis na obra constituída como poética pessoal. Este é claramente o processo de Lenir de Miranda, uma soma infinita de significados, fluindo, manifestando-se aqui e ali sem perder suas referências, um exercício contínuo da memória. As apropriações do cotidiano, sobreposições de sentido, ambigüidades de leitura, tudo ali existe em tensão permanente, a própria utilização do espaço expositivo distribuído em três momentos que se interrelacionam com vazios entre si, responde ao conceito criado por Mallarmé.

    Surge assim uma obra criada como hipertexto fragmentário, no chamado pós-modernismo, como rede de encontros neurais fortuitos, entretecidos por elementos dispersos e meros frutos do “acaso”, dialogando pela visualidade desenhada na memória, composição emergente de uma construção de múltiplos significados, desconstruídos e relacionados pela contínua intersecção do limite entre artes.

    Existirá apenas o acaso? Como Hesíodo nos Erga, te digo: Se quiseres, contarte-ei com arte uma segunda história até o fim. Acolhe-a, porém, no teu coração.

  • Aîsa

    Walter de Queiroz Guerreiro, Prof. M.A.
    Crítico de Arte (ABCA/AICA)
    Joinville – SC Novembro de 2009

    Diante de si o estojo aberto e um nome, Ninguém. Tal como escrínio, contendo uma rara jóia emoldurada travestida de lembrete visual advertindo aos homens do destino que os aguarda; uma paisagem, atormentada pela passagem do tempo, visível no escorrido obscurecendo o céu ou da chuva ácida devastando a terra, a linha do horizonte marcada pelas montanhas despidas de nuvens, pois ali não mais acontecem as lutas eternas entre carne e espírito. Adiante, o verde intenso dos campos intocados, carregados de um valor mítico, heráldico, do sinople que é o da regeneração da própria Terra, antítese de tudo, vida e morte, dos paraísos verdes e dos Campos Elíseos, tranqüilizante como princípio vital, da paisagem idílica como natureza virgem, entretanto, contendo em seu âmago o mofo da regeneração. Aonde se esperariam águas lustrais como purificação, amorosas, dormentes e embaladas pelo verde nada existe. Sobra a cor pardacenta, plasma de uma lama que é o início da degradação, ponto incerto de um jogo que retorna à origem desse Ninguém. Apenas um dado vermelho, lançado no número quatro, será seu destino.

    Lenir de Miranda assim principia, através de uma citação plástica, a recontar o canto IX da Odisséia de Homero e o destino de Ulisses, herói cheio de malícias. Ulisses, considerado por todos um grande herói, chamado na verdade com esse nome por seu avô Autólico, com o sentido de filho do ódio, por isso a Odisséia homérica, resultante de estar irritado com alguém. Herói dúbio, Nanos o errante, é quem aporta à Ilha dos Ciclopes, onde nela se vêem, junto à margem do mar pardacento macios e úmidos prados. E Ulisses como Nanos o errante, ao ser indagado por Polifemo quem era responde: Ninguém é o meu nome. Essa a situação e este o momento da epopéia, centrado aqui em um elemento espúrio, o dado, que comparece como metonímia do acaso. Mais uma vez a artista remonta à noção da Tyche grega no sentido amplo do acaso, aquela causa acidental para a qual não houve nenhuma intervenção divina ou humana. O dado, mais que nenhum outro representa a teoria dos jogos, o fortuito, para o qual gesto, o impensado conduziria a um resultado. Seria apenas esta a proposta? Existe aqui uma sobreposição de significantes, o dado pintado vermelho escuro e o número quatro exposto. Como forma cúbica o dado simboliza a totalidade terrestre e celeste, criada e incriada na causalidade, o número quatro visto pela psicologia Junguiana como todos os processos psíquicos conscientes e inconscientes. Seria assim um símbolo perfeito, porém não apenas com um significado: por ser a totalidade do criado é ao mesmo tempo do perecível – a morte. Vermelho também é a cor proposta no dado deste jogo, ambivalente, pois se é a cor da vida também o é como sinal de interdição, cor da libido oculta e da paixão desenfreada. Rompe assim com toda a tradição do dado branco como cor de passagem e revelação, não por coincidência inexistindo o inverso, já que o preto seria o vazio absoluto, a cor estéril, não permitindo quaisquer possibilidades. Coincidência na escolha da artista ou mero recurso plástico atraindo o olhar? Não creio, a cadeia significante é apenas a cadeia do desejo, como afirma Lacan.

    Aîsa, aquela que decide o destino nos poemas de Homero, aqui preserva o dado para outros tempos, recordando forças não totalmente compreendidas. Acerto e erro equivalem ao ato inicial de um destino, aprender como o Homem dos Dados de Luke Rhinehart, a insignificância causal de toda causa evidente, um simples lance de dados.

  • Prêmio Açorianos de Artes Plásticas: Percepções e Críticas

    Yasmine Mazzoni
    Monografia. Instituto de Artes -UFRGS. Porto Alegre, 2009.

    (…)

    Sobre isso, e fomentando os debates, que são o centro do próximo capítulo, o artista plástico, curador independente e professor do Instituto de Artes da UFRGS, Paulo Gomes, indica que esta limitação do edital parece “bairrista”, excluindo boas exposições da possibilidade de serem agraciadas com o Prêmio.

    […] Tem um critério de bairrismo no Prêmio que eu acho lamentável; por exemplo, artistas que não moram em Porto Alegre, mas que são do Rio Grande do Sul, não concorrem a prêmios, o que eu acho, de uma certa maneira, injusto. A gente não pode colocar Porto Alegre como um centro, mas como é um Prêmio do município, a justificativa é que é um prêmio do município, então até aí eu aceito. Só que houve duas exposições este ano [referindo-se a 2009] que foram excepcionais e que não concorreram ao Prêmio: a exposição da Nara Amélia, de gravura, lá na Usina do Gasômetro, e a exposição de pintura da Lenir de Miranda, que é de Pelotas, no MARGS. Elas não concorreram ao prêmio, o que eu acho injustiça. A Lenir fez a melhor exposição de pintura nos últimos dez anos em Porto Alegre. Então, são os problemas dos limites municipais do Prêmio.[1]

    Acerca do exemplo levantado por Gomes, vale comentar que, na noite de premiação do quarto Açorianos, no dia 8 de maio de 2010, a artista plástica Maria Tomaselli, agraciada com o Destaque de Melhor Exposição Individual pela mostra Magia da Semelhança, junto ao Margs Ado Malagoli, também se manifestou, sugerindo, na sua breve fala, uma certa “injustiça”, pelo fato de que nem Lenir de Miranda, nem Heloisa Schneiders (exposição póstuma também no Margs), haviam sido indicadas na categoria Pintura (as três artistas haviam exposto no Margs no mesmo período, entre dezembro de 2009 e janeiro de 2010). Tomaselli provavelmente se manifestou dessa forma, inclusive, por desconhecer o edital; o fato é que a maioria dos artistas, agraciados ou não, ignoram as “normas” do Açorianos, bem como os critérios dos membros do júri.

    [1] Paulo Gomes, em entrevista à autora no dia 05 de abril de 2010. A entrevista completa encontra-se nos Apêndices deste trabalho.